Saturday, April 29, 2017
POBRES PAGAM MAIS A REFORMA TRIBUTÁRIA QUE NINGUÉM QUER SABER: A QUE FUNCIONA
POBRES PAGAM MAIS
A REFORMA TRIBUTÁRIA QUE NINGUÉM QUER SABER: A QUE FUNCIONA
O problema tributário no Brasil não é o peso tributário ou a arrecadação em si, mas o desequilíbrio (pobres pagam mais) e a forma como se arrecada. Identificar que o problema está na forma de arrecadar
26 de abril de 2017
Há consciência acerca dos prejuízos que o sistema tributário atual acarreta e mesmo assim não há melhora. De 1988 para cá foram 101 emendas à Constituição (apenas seis de revisão, totalizando 3,4 ao ano ou uma a cada 4 meses) sendo que 14 versaram sobre tributação e visaram aprimorar a arrecadação. Carga tributária “supostamente” alta em relação ao PIB (em 2015, 32,66%) não é ruim e é verificada em países como Alemanha (em 2014, 36,1%), Noruega (em 2014, 39,1%), Suécia (em 2014, 42,7%) ou Finlândia (em 2014, 43,9%), de modo que o problema não é o peso tributário ou a arrecadação em si, mas (a) o desequilíbrio (pobres pagam mais) e (b) a forma como se arrecada.
Identificar que o problema está na forma de arrecadar e não na carga implica repensar a forma como os impostos, contribuições e taxas foram concebidos e distribuídos pelo constituinte de 1988 à União, estados, municípios e Distrito Federal, ainda sob o influxo da Emenda Constitucional 18/65, que criou, ainda na vigência da Constituição de 1946, o IPI, o ICM (atual ICMS) e o ISS. Não podendo se tributar com rapidez o fluxo financeiro (isso era impossível à época), a simbiose em favor da coletividade, a associação mutuamente vantajosa tinha que se dar entre atividades econômicas e fisco (seguindo a receita da EC 18/65). Hoje, cinquenta anos depois dessa concepção, pode-se tributar o fluxo financeiro (faturamento) através de contribuições como o PIS e a Cofins e, mesmo assim, não se abandonou o mecanismo anterior.
Sobre o tema existem papo de boteco, jargões prontos e discursos que não se sustentam e são repetidos de forma embriagada: unificar o ICMS, juntar IPI e ICMS, reunir PIS, Cofins e IPI num único tributo sobre valor agregado, recriar a CPMF, tornar todos os tributos progressivos e por aí vai. São propostas que não se justificam. Nos últimos 29 anos, o número de emendas à Constituição ou inovações normativas pelos entes políticos recomenda que se abandonem soluções parciais.
A saída para a reforma tributária envolve a migração da carga tributária das atividades econômicas para as pessoas físicas, fazendo com que estas paguem real imposto sobre a renda (IRPF) e as empresas fiquem desoneradas. Benefícios evidentes: economia ativa, empreendedores focados no negócio e não no custo tributário, e conscientização de que tributação envolve civismo e não extorsão empresarial. A quantidade de habitantes (204 milhões em 2015) e o número de contribuintes aptos a apurar e entregar declarações individuais (em 2015 foram apenas 27,8 milhões de declarações entregues) demonstra que o percentual de contribuintes é baixo: 13,63%. E este percentual ainda carrega uma distinção entre empreendedores isentos (donos de empresas recebem lucros que não são tributados) e trabalhadores assalariados (sujeitos à tabela progressiva do IRPF). A distorção poderia até ser justificada como forma de incentivar o empreendedorismo, mas a tributação igualitária no consumo (ICMS) faz com que ricos e pobres suportem encargos iguais na aquisição de insumos básicos. E o nível de maldade é agravado por encargos previdenciários suportados pelos
“colaboradores” (retidos, porque devidos por estes) reduzindo ganhos e dificultando novas contratações (contribuições sobre a folha). Vale dizer, o sistema atual é desigual. Tributa os mais humildes e desonera os mais abastados.
Essa migração (a verdadeira reforma) deve ser aprovada no primeiro ano de qualquer governo eleito com margem convincente, e com regras de transição lastreadas em fontes até o momento ignoradas. Por sermos um Estado laico, deve ser repensada a imunidade atribuída às organizações religiosas, fazendo com que passassem também a contribuir na medida de suas possibilidades através de imposto específico e progressivo sobre seus fluxos financeiros. A receita da exploração de jogos de azar e da venda de entorpecentes – independentemente da ilegalidade ou não – passaria a ser tributada pesadamente, aproveitando-se a boa experiência com a tributação de bebidas e cigarros. Ao invés de se criar uma tributação sobre grandes fortunas, surgiria um cobrança de IR no momento da transmissão causa mortis para faixas consideradas elevadas, revogando-se a isenção atual. Oferecer redução tributária para quem denunciasse sonegação de terceiros seria uma forma adicional de reforçar a cidadania, e sendo ou não incentivada, será consequência inexorável do novo sistema. Criminalizar conduta contumaz em desfavor do Fisco é exemplo adicional do que se poderia – em se querendo – criar durante a fase de transição do modelo atual para um novo.
A proposta envolveria emenda à Constituição que mantivesse intocados os valores e limites consagrados pelo artigo 145, parágrafo único (direitos e garantias individuais como a legalidade, propriedade e igualdade) e aqueles que delimitam marcos temporais (anterioridade e irretroatividade). A solução passa por reforçar a importância do IR, de competência da União, que poderia ser complementado, novamente, por adicional em favor dos Estados. A revogação da isenção a empreendedores ganharia status constitucional. A universalidade (todos pagam) e generalidade (não importa a renda ou provento) deste tributo seria, assim, real, e não apenas ideal. Imunidades poderiam ser outorgadas aos principais insumos da sociedade moderna: formas de energia, combustíveis e telecomunicações. Como o ônus tributário estaria com as pessoas físicas, haveria impulso às atividades econômicas.
A forma criminosa como os recursos tributários se esvaem desfoca qualquer aproximação, sendo caso de polícia e, portanto, não pode ser tratada aqui. Contudo, a ineficiência das procuradorias no que diz respeito à cobrança de tributos não pagos, deve. Situações como a da cidade de Guarulhos, na região da grande São Paulo (um dos maiores índices de PIB do Brasil) e dotada de poucas varas especializadas em execuções fiscais é exemplo de má administração da cobrança destes recursos. Curiosamente o problema não é da Lei 6.830/80 (regula a cobrança tributária em juízo), mas da combinação de fatores externos: excesso de regras de impossível cumprimento, formas equivocadas de incidência tributária e má gestão. No sistema atual, a questão não é evitar problemas tributários, é saber quando virão. Execuções fiscais: quem não teve uma contra si, certamente tem ou um dia terá.
A forma federativa de nossa república pode ser aprimorada através de regras uniformes de tributação fixadas pelo governo central, no que diz respeito às obrigações principais (pagamento do tributo) e acessórias (informações e documentos). Repensar a possibilidade de regulações tributárias e administrativas, preservando apenas autonomia para questões estaduais e municipais no que diz respeito às taxas não implica ofensa às clausulas pétreas se
todos puderem contribuir livre e individualmente com a economia, pagando seus tributos individualmente e, com isso, moldando uma nova sociedade. Tecnologia para isso, há.
O sistema atual serve como barreira social. Tributar apenas os mais pobres em seus salários e nos produtos de consumo torna-os escravos da necessidade, impedindo convívio familiar e social em detrimento das novas gerações. Barreira que ainda se torna intransponível porque somente os afortunados dispõem de condições ideais para se desenvolver e concorrer no mercado de trabalho. Neste contexto, a tributação não é amarra, mas crueldade.
As universidades e centros de pensamento não deveriam discutir soluções parciais. Mudanças possíveis são experimentadas diariamente por mais de 5600 administrações tributárias municipais, 26 estaduais, uma distrital e uma federal, sem se levar em conta a quantidade de fiscais e órgãos de julgamento que interpretam e aplicam a legislação de forma descentralizada. Desonerar atividades econômicas e aproveitar a potencial quantidade de contribuintes de um país continental é caminho a ser considerado. Seja como for, pensar e propor é desavergonhadamente o primeiro passo.
*Walter Carlos Cardoso Henrique é advogado Professor de Direito Tributário da PUC/SP integra pela OAB/SP o Conselho Estadual de Defesa dos Contribuintes e preside a Comissão Especial de Direito Penal Tributário da OAB/SP.
O desafio de compreender e buscar uma renda básica. Entrevista especial com Josué Pereira da Silva
Discutir a necessidade de uma renda básica universal até mesmo numa roda de amigos não é tarefa fácil. Inevitavelmente, vão surgir as variações do argumento: “isso é para alimentar quem não quer trabalhar. Quem vai bancar?”. Um contra-argumento que pode refutar esse, de lugar comum, é a necessidade de compreender de qual renda mínima de fato se está falando. “A renda básica universal enquanto política social pode beneficiar principalmente a população em condições de pobreza, mas pode beneficiar também os trabalhadores que aparentemente não precisam de uma renda desse tipo”, esclarece o professor Josué Pereira da Silva, um dos estudiosos do tema no país.
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Josué explica que, no caso de pessoas que vivem na pobreza, essa pode ser a chance de mudar de situação. “Pode-se argumentar que a renda básica garantida contribuiria para aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, reduzindo os efeitos de expectativas de desemprego nos momentos de negociação de melhores salários e condições de trabalho”, completa. Mas é difícil falar disso hoje. “E essa dificuldade decorre, a meu ver, da hegemonia dos valores capitalistas dominantes, inclusive entre setores da esquerda”, aponta. Para ele, uma saída pode ser esclarecer movimentos sociais acerca do tema. “O problema não é propriamente a falta de recursos, mas a falta de um projeto político que priorize a cidadania em vez de satisfazer-se apenas em agradar ao mercado”, aponta.
Distribuição de Renda | Foto: Diário do Engenho
Josué Pereira da Silva é bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo -USP, mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Sociologia pela New School for Social Research, Nova Iorque, Estados Unidos. Atua como professor na Unicamp. Desde 2011 coordena, junto com Sílvio Camargo, o grupo de pesquisa Teoria Crítica e Sociologia. De sua produção bibliográfica, destacamos André Gorz. Trabalho e política (São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002); André Gorz e seus críticos (São Paulo: Annablume, 2006); e Por uma sociologia do século XX (São Paulo: Annablume, 2007).
A entrevista é publicada na revista IHU On-Line, no. 503, com o tema de capa A ‘uberização’ e as encruzilhadas do mundo do trabalho.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como as questões relacionadas a trabalho e renda confluem para as discussões sobre a renda básica universal?
Josué Pereira da Silva – A primeira chave para pensar essa relação entre trabalho e renda está na chamada crise do Estado de bem-estar social, bem definido por Gosta Esping-Andersen [1] como “social citizenship state” (Estado de cidadania social), em seu livro Politics Against Markets. The Social Democratic Road to Power [2]. A despeito das muitas críticas – burocratização, centralização, androcentrismo – que esse modelo de Estado social recebia de diversos quadrantes, ele tinha a virtuosidade de combinar crescimento econômico com o pleno emprego da força de trabalho. Era a partir da administração desse equilíbrio entre crescimento econômico e pleno emprego que o Estado de bem-estar social geria, pela garantia de direitos sociais (educação, saúde e renda), uma aceitável distribuição da riqueza socialmente produzida, apaziguando com isso o conflito entre os principais atores envolvidos. Para além das diferenças entre os diversos modelos de Estado de bem-estar – anglo-americano, central-europeu e nórdico-europeu –, esse era seu desenho predominante.
Com a crise fiscal, inicialmente, e a revolução tecnológica, num segundo momento, o equilíbrio da equação de crescimento econômico e pleno emprego se desfez. O crescente desemprego estrutural e tecnológico daí decorrente contribuiu, de um lado, para reduzir a base fiscal arrecadadora de impostos do Estado e, de outro, para aumentar a demanda por direitos sociais. Grosso modo, é do contexto de desemprego da década de 1980, portanto, que emergiu o debate contemporâneo sobre transferência direta de renda, que tem como marco principal o texto “A Capitalist Road to Communism” (um caminho capitalista para o comunismo), de Robert van der Veen [3] e Philippe Van Parijs [4], de 1986 (Theory and Society, volume 15, número 5).
Mas esse tipo de explicação diz respeito principalmente aos países centrais do capitalismo. Em países da periferia do capitalismo como o Brasil, além dos problemas apontados acima, temos também como agravantes a pobreza extrema que atinge significativos setores da população e uma mais acentuada desigualdade social. Assim, se nos países centrais a adoção da renda básica de cidadania pode significar um caminho para reconstruir o Estado de bem-estar, em países como Brasil ela pode oferecer as condições materiais necessárias para tirarmos parte da população da condição de subcidadania, garantindo-lhe mais autonomia e dignidade, condições fundamentais para a construção de uma cidadania plena entre nós.
IHU On-Line – André Gorz [5] pensou a necessidade de se implementar políticas de renda básica universal em dois momentos históricos distintos, na década de 1980 e, depois, nos anos 1990. O que estava em jogo nesses diferentes períodos?
Josué Pereira da Silva – De fato, os textos que André Gorz escreveu sobre o assunto permitem que se distinga uma mudança em sua abordagem da renda básica, ou alocação universal – termo mais utilizado na França para falar de renda básica. Antes de 1997, Gorz defendia a desvinculação entre renda e tempo de trabalho, mas insistia na necessidade de manter o vínculo entre trabalho e renda porque acreditava no “direito ao trabalho”, ainda que em duração reduzida, como “direito político” de participar da produção social. Para ele, era a manutenção do vínculo entre trabalho e renda que caracterizava o que ele considerava a “posição de esquerda”, enquanto associava a transferência incondicional de renda ao que denominava “posição de direita”.
Sua mudança de posição a respeito a partir de 1997 decorre, segundo ele próprio, de uma reavaliação do contexto histórico, caracterizado principalmente pela emergência do “imaterial”, que em sua avaliação impossibilitava a aplicação de critérios de equivalência no cálculo das contribuições individuais e, portanto, na atribuição das remunerações na forma de salário. Há outras razões alegadas para a mudança de posição, como a globalização; mas é certamente a crescente importância da dimensão do imaterial no mundo da produção o principal fator por trás de sua mudança de posição. Em meu livro Por que renda básica? [6], eu trato mais detalhadamente deste tema.
IHU On-Line – Que transformações no mundo do trabalho tornaram o debate sobre a renda básica universal extremamente atual?
Renda básica pode ser uma importante proteção contra as incertezas; daí a atualidade do debate
Josué Pereira da Silva – Creio que as respostas às duas questões anteriores já contemplam esta questão. Mas, de forma resumida, podemos dizer que desemprego estrutural e tecnológico, pobreza e desigualdade social extremas, crescente relevância da produção imaterial, a globalização da economia e seus efeitos perversos sobre as vidas das pessoas em diversas partes do mundo, tudo isso torna mais vulnerável a segurança material de importantes setores da população mundial. Em tal contexto, a renda básica pode ser uma importante proteção contra as incertezas; daí a atualidade do debate.
IHU On-Line – No Brasil, dado o conservadorismo político do atual Congresso, como se poderia construir uma agenda em torno da renda básica universal? De onde viriam os recursos?
Josué Pereira da Silva – A renda básica universal enquanto política social pode beneficiar principalmente a população em condições de pobreza, mas pode beneficiar também os trabalhadores que aparentemente não precisam de uma renda desse tipo. Se no primeiro caso parece indiscutível sua pertinência, no segundo pode-se argumentar que a renda básica garantida contribuiria para aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, reduzindo os efeitos de expectativas de desemprego nos momentos de negociação de melhores salários e condições de trabalho. Ademais, a renda básica, enquanto tal, não se contrapõe a nenhuma das reivindicações dos diferentes movimentos sociais. Por isso, ao contrário, ela pode até contribuir para unificar suas ações em torno de uma pauta comum.
A despeito de tudo isso, o grande problema de “construir uma agenda em torno da renda básica universal” é a dificuldade em sensibilizar os diversos movimentos sociais para sua importância. E essa dificuldade decorre, a meu ver, da hegemonia dos valores capitalistas dominantes, inclusive entre setores da esquerda. Quanto aos recursos, creio que é uma falsa questão. O problema não é propriamente a falta de recursos, mas a falta de um projeto político que priorize a cidadania em vez de satisfazer-se apenas em agradar ao mercado. A propósito, basta comparar, a título de exemplo, o montante de recursos destinados anualmente ao Programa Bolsa Família (R$ 29,7 bilhões), que não chega a 0,5% do Produto Interno Bruto – PIB, com os recursos destinados ao que recentemente ficou conhecido, no noticiário da grande imprensa, como “Bolsa Empresário”, cujo montante estimado para este ano (R$ 224 bilhões) alcança 3,4% do PIB (Cf. Folha de S. Paulo, 16/10/2016).
IHU On-Line – Quando se discute o mundo do trabalho em perspectiva com a economia, muitas vezes se recorre ao argumento do crescimento do PIB. De onde vem esta obsessão pelo crescimento do PIB? Este crescimento tem mais a ver com as dinâmicas do capital ou com a geração de postos de trabalho?
Josué Pereira da Silva – O crescimento econômico em si não é um problema; mas é problemática a obsessão pelo crescimento, sobretudo quando não há preocupação com seus efeitos negativos de longo prazo sobre o ambiente natural. É difícil imaginar capitalismo sem crescimento econômico, mas há uma excessiva valorização do produtivismo como se fosse o único caminho possível para se alcançar o bem-estar da população. É essa lógica produtivista hegemônica, da qual a esquerda tradicional não consegue escapar, que explica a obsessão pelo crescimento, seja quando vista pela dinâmica do capital, seja pela imaginada geração de postos de trabalho que dele se espera. Nesse caso, ambas, dinâmica do capital e geração de empregos, aparecem como os dois lados de uma mesma moeda.
IHU On-Line – Como os projetos de lei de reformas trabalhista e previdenciária propostos pelo atual governo acentuam ainda mais as desigualdades sociais?
Josué Pereira da Silva – Antes de tudo, é preciso dizer que as duas me parecem mais contrarreformas que visam desconstruir importantes conquistas históricas da precária cidadania brasileira do que reformas no sentido clássico que sempre estiveram vinculadas a melhorias nas condições de vida da população. Por outro lado, não há discussão séria e profunda sobre o alegado déficit da previdência e tampouco sobre a seguridade social num sentido amplo, que não deve ser tratada apenas em termos atuariais. Além do mais, elas são levadas a efeito por um governo, cujo poder herdado não resulta de um programa eleito para esse fim.
Por tudo isso, fica-se com a impressão de que se trata de um desdobramento tardio daquilo que na década de 1990 ficou conhecido como “workfare”, cujo principal objetivo é criar um ambiente favorável aos interessados no enfraquecimento da legislação trabalhista e na expansão da previdência privada. Ou seja, sua lógica é expandir a fronteira da privatização.
IHU On-Line – Como a implementação da renda básica universal atualiza a ideia de trabalho a partir de noções como labor (trabalho produtivo) e opus (trabalho artístico e cultural)?
Não vejo a renda básica como panaceia para todos os problemas. Mas acho que ela poderia facilitar bastante o combate à pobreza extrema e à desigualdade social
Josué Pereira da Silva – Como já escrevi antes, não vejo a renda básica de cidadania como panaceia para resolver todos os problemas da humanidade. Mas acho que ela poderia facilitar bastante o combate à pobreza extrema e à desigualdade social, acentuada pela crise dos sistemas de proteção social e pela globalização da economia. Não sei se a renda básica atualiza a ideia de trabalho em qualquer dos dois sentidos mencionados, mas ao garantir às pessoas uma renda desvinculada do assalariamento, ela cria condições para que as pessoas possam desenvolver suas potencialidades sem a pressão da luta pela sobrevivência material.
Isso daria mais autonomia para as pessoas decidirem onde preferem empregar suas energias, inclusive dedicando-se, por exemplo, a atividades socialmente importantes – artísticas, culturais, artesanais etc. – mas sem valor de mercado. O amplo desenvolvimento desse tipo de atividade poderia implicar mudanças na percepção e na relação das pessoas com o trabalho assalariado.
IHU On-Line – Chegamos à fronteira do trabalho assalariado ou esse modelo ainda tem fôlego? Quais devem ser os rumos do trabalho no século 21?
Josué Pereira da Silva – O peso do trabalho assalariado como norma no mundo contemporâneo é inegável. E tudo indica que assim continuará ainda por muito tempo. Mas vejo duas tendências mais ou menos claras: a sensação de que tudo virou trabalho e a expansão da lógica da mercadoria para os mais recônditos domínios da vida social. Em tal situação, a luta principal, a meu ver, deve ser contra a tendência de se transformar tudo em mercadoria; consequentemente, embora o trabalho assalariado seja o padrão normativo dominante, não podemos aceitar que toda atividade se transforme em trabalho assalariado.
IHU On-Line – Em uma economia do conhecimento, em que o trabalho intelectual (no sentido de circulação de informações) prepondera sobre o trabalho material, de que ordem são os desafios à geração de renda?
Josué Pereira da Silva – No contexto da economia de conhecimento, a criação de riqueza num sentido amplo (e não apenas geração de renda) assenta-se mais na interação e na criatividade social, cuja contribuição individual não é passível de medição, do que na relação de equivalência direta típica das trocas no mercado. Se a chamada economia do conhecimento se apropria dessa riqueza socialmente produzida, então o problema principal não é mais o da geração de riqueza, mas o de sua distribuição. Daí a pertinência da renda básica universal.
IHU On-Line – Não seria a renda básica universal uma forma de “salvar” o capitalismo?
Temos desde janeiro de 2004 uma lei, sancionada pelo então presidente Lula, que previa a instituição da renda básica de cidadania no Brasil
Josué Pereira da Silva – Difícil saber. A resposta será afirmativa se a renda básica universal se limitar a um patamar tão reduzido que não seja suficiente para garantir condições de vida digna às pessoas, de forma que elas continuem precisando se submeter às exigências do capitalismo neoliberal. Mas caso sua implementação se dê com sólido apoio social e a partir de um montante suficiente para garantir condições materiais que permita a cada pessoa viver com dignidade sem precisar necessariamente vender sua força de trabalho no mercado, ela também pode se transformar naquilo que André Gorz denomina “reforma revolucionária”, contribuindo, assim, para “desmercadorizar” parcialmente a força de trabalho e para desafiar com isso um importante pilar do capitalismo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Josué Pereira da Silva – Primeiro, que já temos desde janeiro de 2004 uma lei, sancionada pelo então presidente Lula, que previa a instituição da renda básica de cidadania no Brasil a partir de 2005, mas que ainda não saiu do papel. Por outro lado, embora não ignore que o contexto atual brasileiro e mundial é bastante adverso, continuo achando que não dá para perder a esperança e deixar de acreditar num futuro melhor. Mas, para tanto, precisamos também de uma esquerda diferente daquela até aqui dominante. Uma esquerda que tenha de fato apreço pela democracia e pela ética, que realmente se oponha à expansão desenfreada do capitalismo neoliberal e que também não seja cega às consequências negativas dessa expansão capitalista para as vidas das populações mais vulneráveis e para o ambiente natural.
Notas:
[1] Gosta Esping-Andersen (1947): sociólogo dinamarquês cujo foco principal é o estado de bem-estar e seu lugar nas economias capitalistas. Esping-Andersen é professor da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona (Espanha) e membro do Comitê Científico do Instituto Juan March e do Conselho de Curadores e do Conselho Científico do IMDEA Instituto de Ciências Sociais, em Madri (Espanha). (Nota da IHU On-Line)
[2] Princeton University Press, 1985. (Nota do entrevistado)
[3] Robert Jan van der Veen (1943): teórico político holandês, atualmente é professor assistente de ciência política na Universidade de Amsterdam. Antes disso, estava no Instituto Holandês de Estudos Avançados de Trabalho (entre 1977 e 1978) na Universidade de Groningen, onde se graduou em 1991, no Departamento de Economia da Universidade de Rotterdam Erasmus e da Universidade de Warwick. Van der Veen tem um fundo em marxista teoria política e economia política. Como tal, ele foi envolvido na década de 80 com o marxismo analítico. Ele tem se especializado no período final na relação entre o comportamento racional e ambiental e renda básica. (Nota IHU On-Line)
[4] Philippe Van Parijs (1951): economista e filósofo belga. Estudou economia, direitos, sociologia e linguística e obteve um doutorado na Universidade de Oxford. Ele é professor na Universidade de Louvain-la-Neuve e Harvard. (Nota da IHU On-Line)
[5] André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco. Escreveu inúmeros livros, vários deles traduzidos para o português, entre eles Adeus ao proletariado (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982), Metamorfoses do trabalho. Crítica da razão econômica (São Paulo: Annablume, 2003) e Misérias do Presente, Riqueza do Possível (São Paulo: Annablume, 2004). Realizamos uma entrevista com André Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição da revista IHU On-Line, de 2-1-2005, e na íntegra no número 31 dos Cadernos IHU ideias, com o título A crise e o êxodo da sociedade salarial. Sobre André Gorz também pode ser lido o texto Pelo êxodo da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho em André Gorz, de autoria de André Langer, pesquisador do Cepat. O texto está publicado nos Cadernos IHU nº 5, de 2004. O site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU deu ampla repercussão à morte de Gorz. Para acessar o material, acesse as Notícias do Dia 26-9-2007. (Nota da IHU On-Line)
[6] Annablume, 2014, páginas 63-83. (Nota do entrevistado)
AS LÓGICAS ILÓGICAS DA TERCEIRIZAÇÃO
DIREITOS TRABALHISTAS
AS LÓGICAS ILÓGICAS DA TERCEIRIZAÇÃO
25 de abril de 2017
Enquanto o meio jurídico passou os últimos anos interpretando e buscando adequações jurídicas para a terceirização, o pragmático meio empresarial tratou de difundir essa forma de gestão do processo produtivo em todos os setores e atividades econômicas. Embora distintas, a terceirização acabou se confundindo com intermediação de mão de obra, reduzindo o trabalhador à condição de mercadoria. Prova disso, que, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), 90% dos casos de trabalho análogo à escravidão ocorrem entre trabalhadores terceirizados.
Curioso constatar que, respeitadas as divergências doutrinárias, ambas, a terceirização e a intermediação de mão de obra, encontram-se perfeitamente disciplinadas no ordenamento jurídico brasileiro. A primeira, de natureza jurídica contratual, encontra fundamento no Código Civil, através de diversos tipos de contratos como os de prestação de serviços, de empreitada, fornecimento de bens, consórcio, concessão e etc., respeitando sempre o princípio da boa-fé objetiva. A segunda, por sua vez, é expressamente vedada, por força dos art. 1º, IV e 170 da CF/88, art. 8º, da CLT e art. 203 do Código Penal, posto que viola o princípio fundamental internacional de que o trabalho não é uma mercadoria, sendo admitida excepcionalmente, nos casos de trabalho temporário, conforme disciplina a Lei 6.019/74.
A “ultrapassada” CLT já previa regramento para a terceirização, na modalidade de empreitada, desde 1943, estabelecendo, em conformidade com o princípio da proteção, a responsabilidade solidária entre tomadora e prestadora, nos moldes do art. 455. Do mesmo modo, a Lei 6.019/74 reiterou a responsabilidade solidária.
Nessa perspectiva, o ordenamento jurídico vem sendo sistematicamente flexibilizado pela jurisprudência em prol de interesses econômicos, invertendo-se a lógica irrenunciável do direito do trabalho, que deve sempre ser ampliado na medida do princípio da condição mais benéfica, mantendo-se um patamar mínimo civilizatório com base na dignidade da pessoa humana.
Mas, afinal, porque tanta confusão e polêmica em torno do tema da terceirização? Porque tanta oscilação do Poder Judiciário frente ao Poder Econômico, haja vista os recuos da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e a desconstitucionalização da norma trabalhista pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? Porque tanto labor do Poder Legislativo em regulamentar a terceirização, tendo a Câmara aprovado dois Projetos de Lei para regulamentar a mesma matéria?
A LÓGICA DO PODER JUDICIÁRIO
Inicialmente, o TST se posicionou, através da Súmula 256, de 1986, quanto à ilegalidade a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços. Mais tarde, reviu seu posicionamento, cedendo à pressão da livre iniciativa, admitindo como lícita a terceirização de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação, através da vigente Súmula 331.
Em 2010 o STF ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 16, decidiu pela irresponsabilidade do Estado na contratação de serviços terceirizados, considerando constitucional o art. 71, §1º, da Lei 8.666/93, com base no princípio da supremacia do interesse público secundário, prevalecendo o erário sobre o bem-estar social. Atualmente, tramita no STF o Recurso Extraordinário 958.252, questionando a constitucionalidade da Súmula 331, do TST, quanto à restrição da terceirização em atividades-fim.
Muitos doutrinadores sustentam a imprecisão da terminologia adotada pelo TST, mesmo ela tendo seguido as diretrizes do toyotismo, de que a empresa deve manter o foco na atividade-fim, subcontratando atividades periféricas, para maximizar sua competitividade e seus lucros, num contexto global de reestruturação produtiva.
Todavia, o erro não foi terminológico, mas sim procedimental, uma vez que se instituiu a prática de terceirizar todo tipo de atividade para depois levá-la à apreciação do Judiciário para se manifestar quanto à sua licitude caso a caso. Isto acarretou a elevação acentuada da litigiosidade na esfera trabalhista, sendo que 22 das 100 maiores executadas da Justiça do Trabalho são empresas terceirizadas, conforme dados do Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT).
O controle deveria ser prévio e não posterior, nos moldes da legislação trabalhista japonesa, que prevê a necessidade da empresa se habilitar para adquirir uma licença para prestar serviços terceirizados, evitando que empresas inidôneas se beneficiem ilicitamente da terceirização e assegurando que tenham know-how e patrimônio próprio para atuar neste setor altamente concorrido e especializado. No Brasil existem empresas terceirizadas sem qualquer patrimônio e experiência na sua área de atuação, muitas vezes até sem endereço, que são criadas e mantidas pelas próprias tomadoras para se furtarem das obrigações trabalhistas.
Não há nenhuma dificuldade em se distinguir a atividade-fim de uma empresa, bastando que se identifique sua principal fonte de lucros, aplicando-se o princípio da primazia da realidade. Afinal, o lucro será sempre a atividade-fim de qualquer empreendimento. Admitir a terceirização de atividades-fim, como reivindicam os empresários brasileiros, incorreria na abstração tautológica de uma empresa ter como sua principal atividade econômica a prática da terceirização, se tornando uma grande “terceirizadora” que apenas coordena e administra os contratos de prestação de serviços.
A lógica do poder econômico
A terceirização, por si só, não pressupõe uma lógica razoável de fomento ao desenvolvimento econômico e à maximização dos lucros. Se não, vejamos, um empresário que decide terceirizar todas as atividades da sua empresa sem infringir as leis trabalhistas, teria de pagar no valor do contrato, os custos e o lucro das prestadoras de serviços. Consequentemente, ao terceirizar, estaria, de uma forma irracional, onerando ainda mais seu produto.
A terceirização, por si só, não pressupõe uma lógica razoável de fomento ao desenvolvimento econômico e à maximização dos lucros. Se não, vejamos, um empresário que decide terceirizar todas as atividades da sua empresa sem infringir as leis trabalhistas, teria de pagar no valor do contrato, os custos e o lucro das prestadoras de serviços. Consequentemente, ao terceirizar, estaria, de uma forma irracional, onerando ainda mais seu produto.
O conceito de terceirização tem estreita relação com a dinâmica de produção industrial, tendo sido concebido para atender a uma necessidade conjuntural específico do mercado japonês no pós-guerra, sendo a terceirização um dos elementos constitutivos do modelo toyotista de produção que pressupõe qualidade associada à produtividade por demanda.
Essa técnica de gestão permite à empresa controlar os custos fixos de produção e administrar os riscos da atividade econômica em função das flutuações do mercado consumidor que pode ser afetado por crises financeiras. Além disso, ao descentralizar a produção, isso faz com que seja estimulada a concorrência entre as empresas terceirizadas, estimulando o desenvolvimento de inovações tecnológicas que possibilitem reduzir os custos globais de produção.
Nesta cadeia produtiva em rede, uma terceirizada deve produzir as peças de um veículo Toyota com a mesma qualidade que esta produziria, sendo necessário que haja forte sintonia e confiança entre tomadora e prestadora para se obter bons resultados, o que configura a subordinação estrutural, estabelecendo-se vínculo elementar entre a tomadora e o trabalhador terceirizado. Caso contrário, o resultado final seria apenas um amontoado aleatório de peças baratas e não uma das marcas de automóveis mais desejadas do mundo.
Não se trata de reduzir o custo da produção pela precarização da força de trabalho. Esta, inclusive deveria ser valorizada, uma vez que se trata de mão de obra altamente especializada, criativa e polivalente. De outro modo, seria como exigir que os empregados trabalhassem mais e com mais qualidade e ao final recebessem proporcionalmente menos pelo serviço prestado. Contraditoriamente, no Brasil, os trabalhadores terceirizados recebem em média 30% menos que os efetivos, segundo pesquisa do DIEESE.
A redução dos custos, considerada como o principal motivo para se terceirizar por 88,9% dos empresários, segundo sondagem estatística da Confederação Nacional da Indústria, deve ser alcançada pela livre concorrência entre setores periféricos de produção, sem que isso cause danos ou prejuízos ao trabalhador, que é terceiro de boa-fé na relação contratual entre a tomadora e a prestadora. Ao terceirizar, os empregadores já tem a vantagem econômica de que os salários de cada categoria de empregados passam a ser regulados pelo mercado de trabalho e não mais no âmbito interno da empresa, o que por si só já representa grandes perdas para a classe trabalhadora.
Aí reside, em grande medida, a dificuldade da indústria nacional, atrasada e subdesenvolvida, em assimilar essa lógica complexa de produção, utilizando a terceirização apenas como meio para reduzir os custos da força de trabalho em qualquer tipo de atividade. Tanto assim que um dos setores que mais se terceiriza no Brasil, com fortes resquícios de uma cultura escravocrata, são os serviços gerais de limpeza e conservação, onde há pouquíssima margem para redução dos custos pelo implemento de novas tecnologias.
O problema é que a ideologia da terceirização trouxe consequências negativas até mesmo para os países desenvolvidos. No Japão a rotina de trabalho se tornou tão árdua que se cunhou o termo “karoshi” para designar os trabalhadores que literalmente morrem de tanto trabalhar. Em nenhum lugar do mundo efetivou-se o milagre econômico de haver trabalhadores terceirizados com melhores condições de trabalho que os efetivos.
Pelo contrário, a terceirização aprofundou a divisão social do trabalho e fragmentou a organização da classe trabalhadora, criando segregação até mesmo entre os terceirizados, dividindo-os em especializados e precarizados, em desconformidade com o princípio da não-discriminação e da isonomia. Isso tem levado alguns países, como a Rússia, a rever suas leis de terceirização, para torná-las mais rígidas.
A LÓGICA DO PODER LEGISLATIVO
Feitas todas essas considerações acerca das contradições que envolvem o processo de terceirização, cabe analisar o elemento central nas tentativas de regulamentação da terceirização no Brasil. É preciso esclarecer que não há, em ambos projetos, PL 4330/04 e o PL 4.302/98, qualquer perspectiva ampliadora de direitos para os terceirizados, além das promessas messiânicas de retomada da economia e geração de empregos. O que distingue as duas propostas substancialmente a questão da responsabilidade jurídica da empresa tomadora pelos prejuízos que possam resultar ao trabalhador terceirizado.
A resistência e a luta organizada dos trabalhadores contra o PL. 4330/04 levou à alteração da redação original para a inclusão da responsabilidade solidária entre tomadora e prestadora, em sintonia com o direito comparado de países como França, Espanha, Itália, Canadá, Portugal, Chile, Argentina, Venezuela, México, Índia e Coreia do Sul. Isso motivou o Presidente da Câmara, Deputado Rodrigo Maia, defensor do fim da Justiça do Trabalho, a desengavetar o retrógrado projeto recém-aprovado pela Câmara dos Deputados, que consiste na legalização da contratação de mão de obra por empresa interposta, o que configura o crime de “marchandage” na França (art. L125-1, Code du Travail).
Tal artifício legislativo para burlar direitos trabalhistas pressupõe a má-fé das prestadoras de serviços, terceirizando os riscos do negócio para o trabalhador. Traduzindo, significa dizer que diante da possibilidade do prestador de serviços agir de forma inidônea para reduzir os custos da força de trabalho, deve-se primeiramente resguardar, com a responsabilidade subsidiária, a empresa tomadora, que é quem se beneficia diretamente do serviço prestado pelo terceirizado. Tanto assim, que logo após a aprovação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13), de iniciativa popular, houve um processo de desterceirização em muitas empresas brasileiras, receosas das possíveis consequências jurídicas.
Aqueles que defendem e acreditam na terceirização como eficiente técnica de gestão empresarial, não deveriam temer a responsabilidade solidária, assumindo os riscos e os benefícios do negócio. Se porventura vierem a sofrer ações trabalhistas decorrentes de atos praticados pelas prestadoras, restará, ainda, o direito de regresso junto à Justiça Comum, que é o local próprio das relações contratuais cíveis, como é o caso da terceirização. Não se pode de maneira ardil, como está sendo feito, condenar o trabalhador a ter seus direitos frustrados perante a insolvência da empresa terceirizada, sob o argumento da segurança jurídica da tomadora.
Tal raciocínio jurídico soa absurdo por qualquer ramo do direito que se analise: constitucionalmente viola o valor social do trabalho, civilmente viola o princípio da boa-fé, na seara trabalhista viola o princípio da proteção e no âmbito dos direitos humanos viola a própria dignidade humana do trabalhador. Em síntese, significa admitir que as empresas tomadoras se beneficiem da própria torpeza, incorrendo no enriquecimento ilícito às custas dos prejuízos causados pela prestadora ao trabalhador. Contra a lógica precarizante da terceirização, somente a consciência coletiva dos trabalhadores pode resistir.
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