Tuesday, June 09, 2020

Doze dias que abalaram os Estados Unidos

Doze dias que abalaram os Estados Unidos

Como a luta antirracista sacudiu a arrogância e planos da ultradireita. As frestas na cúpula do poder. As multidões pacíficas e o ataque a símbolos do sistema. Negros e brancos juntos nas ruas. Trump, emblema de um capitalismo sociopata
Por Richard Greeman, no Counterpunch | Tradução de Antonio Martins Simone Paz Hernández
Deflagrados pelo assassinato de George Floyd pela polícia e alimentados pela relutância das autoridades de Minneapolis em prender e processar os três cúmplices do assassino, os protestos de multidões varreram os estados Unidos como intensidade inédita desde os anos 1960. Em mais de 150 cidades, os afro-americanos e seus aliados encheram as ruas, enfrentando a pandemia de covid-19 e a violência da polícia. Desafiaram séculos de desigualdades de raça e classe, exigindo liberdade de justiça para todos e colocando em xeque uma estrutura de poder racista e corrupta, baseada em repressão violenta.
1. Brechas nas defesas do sistema:
Depois de dez dias seguidos na ruas, a indignação popular contra a injustiça sistemática abriu diversas brechas no muro de defesa do sistema. As autoridades legais do estado de Minnesota, onde Floyd foi morto, foram forçadas a prender e indiciar todos os policiais envolvidos, por homicídio de segundo e terceiro graus. Surgiu uma divisão na cúpula do poder nacional, onde secretário de Defesa e diversos generais do Pentágono divergiram de seu comandante-em-chefe, Donald Trump, que tentou mobilizar o exército contra os manifestantes.
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Protesto em Nova York, em 3/6/2020
O levante histórico é um transbordamento da raiva acumulada dos negros, em décadas de assassinatos policiais. Ele articula o luto acumulado de famílias e comunidades, o ultraje diante da impunidade de policiais assassinos tanto no Norte quanto no sul do país. Reflete a ira diante da traição do “sonho” de Martin Luther King de uma revolução não violenta e o horror diante da volta de uma era de linchamentos públicos, estimulada por Trump. A revolta demanda, com impaciência, que os EUA enfim cumpram seus alegados ideais democráticos. Nas palavras de um manifestantante negro, William Achukwii, de 28 anos, de São Francisco: “Nossa Declaração de Independência fala de vida, de liberdade e de busca da felicidade. Agora, estamos tratando da parte que diz respeito à vida. É o primeiro passo. Mas é por liberdade que muitas pessoas estão marchando”.
2. Violência e Não Violência:
Não foi nenhuma surpresa que autoridades locais e estaduais, em todo o país, reagissem a protestos muito majoritariamente pacíficos e espontâneos desencadeando uma espiral de violência policial militarizada [1]. Há muitos anos, a Casa Branca oferece silenciosamente, aos governos locais, enormes volumes de material militar excedente – inclusive tanques de guerra. Os chefes de polícia ansiavam por brincar com seus novos brinquedos letais, concebidos para liquidar a contra-insurgência em lugares como o Afeganistão. Tanto sob presidentes republicanos (Bush e Trump) quanto sob democratas (Clinton e Obama), o Estado armou as forças da ordem para uma contrarrevolução preventiva. É a isso, precisamente, que se referiu Trump, quando pediu “controle completo”, por meio de repressão militar, detenções em massa e longas sentenças de prisão em nome da “lei e da ordem”. Graças à determinação das multidões de manifestantes, quase sempre não violentos, os militares dividiram-se e Trump não foi capaz de executar sua ordem.
A respeito da violência, temeu-se no início que os numerosos incidentes de incêndios, destruição de vitrines e saques – especialmente à noite, quando as grandes multidões de manifestantes haviam voltado para casa – pudessem de alguma maneira distorcer o levante e oferecer u pretexto para a supressão violenta de todo o movimento. E o que pediu Trump, que culpou um imaginário grupo terrorista chamado ANTIFA (abreviação de “anti-fascismo”, na verdade uma rede decentralizada). Ao mesmo tempo, relatos de gangues de racistas brancos usando chapéus MAGA (“Make America Great Again – Faça os EUA grandes de novo”) e cometendo atos de vandalismo; ou de “aceleracionistas” atiçando fogo em comunidades negras para “provocar a revolução; ou de provocadores violentos da polícia não podem ser menosprezados totalmente.
Protesto em Boston, em 31/5/2020
Tais ações jogam água no moinho de Trump. Contudo, as vocês mais sensatas das centenas de milhares de manifestantes não violentos, porém irados, talvez não tivessem sido ouvidas pelas autoridades se não houvesse, nas bordas, a ameaça da violência. Em vez de incendiar suas próprias comunidades, com ojá aconteceu em rebeliões passadas,os militantes de agora estão atingindo estrategicamente símbolos da repressão estatal e do capitalismo. Incendeiam e destroem aparatos da polícia, jogam lixo nas lojas de corporações bilionárias e chegam a pressionar as cercas da Casa Branca. De qualquer forma, já que se falou de “saques”, a porta-voz dos Black Lives Matter lembrou, no funeral de George Floyd, que brancos saqueiam a África e os afroamericanos há séculos. Reparações são há muito necesssárias.
3. Convergência de Antirracistas Negros e Brancos:
O mais notável e comovente, ao ver as faces apaixonadas dos manifestantes, em fotos, vídeos e relatos da TV e dos jornais, é perceber que ao menos metade dos que gritavam “Black Lives Matter” eram brancos. Também aqui, abriu-se uma imensa brecha no muro de racismo estrutural e institucionalizado que permitiu por décadas, à classe dominante norte-americana, dividir e submeter as massas trabalhadores. Ela aprendeu a jogar os escravos, e seus descendentes discriminados, contra os escravos assalariados brancos, numa corrida competitiva pra baixo. Agora, os oprimidos estão se unindo para lutar por justiça e igualdade. Também é notável o papel de liderança das mulheres, especialmente negras, tanto na fundação do movimento #BlackLivesMatter quanto na Marcha das Mulheres diante da posse de Trump. A participação de jovens e velhos, de LGBTs e de portadores de deficiência também dev ser destacada.
Manifestantes em Nova York, em 2/6/2020
Esta convergência de lutas pela liberdade, em meio a divisões étnicas profundamente enraizadas promete abrir novas avenidas, assim que os movimentos sociais emergirem do confinamento pela pandemia. Ainda mais notáveis, embora limitados, foram os casos de policiais que se desculparam individualmente pela violência policial, abraçando vítimas e se ajoelhando diante dos manifestantes. Autoridades como o prefeito de Los Angeles foram obrigadas também a se encontrar com os que estavam nas ruas e se desculpar por declarações racistas. Mais ainda: como veremos a seguir, surgiram divisões importantes na unidade dos militares norte-americanos, tanto em sua base – que é composta em 40% de negros – quanto entre os altos escalões. É enorme a potência deste movimento inter-racial, auto-organizado e massivo, que exige “liberdade e justiça para todos”, citando as belas palavras do Juramento de Fidelidade à República.
4. Divisões no interior do regime:
Depois de dez dias em que os protestos cresceram sem parar, tanto numericamente quanto na profundidade de seus sentidos, começaram a surgir divisões na defesa da classe dos bilionários. Elas chegaram à Casa Branca, onde Donal Trump, governante auto-iludido, ignorante e mentiroso patológico, foi finalmente desafiado por seus próprios assessores de segurança.
Vale dizer que a classe governante bilionária tem, em Trump, o representante que merece; e a inépcia do presidente, visível para todos, é simbólica da incapacidade desta classe para manter o direito a governar. A personalidade cindida e autocentrada de Trump encarna os estreitos interesses de classe do 0,1%, que concentram mais de metade da riqueza do país. Seu egoísmo óbvio expressa o dos bilionários que ele representa (e entre os quais finge figurar. Do alto de sua ignorância intencional, Trump fala de uma classe capitalista corporativa indiferente às consequências sociais e ecológicas de sua ânsia sem limites em acumular, seu desprezo à verdade, à justiça – e, ao final de contas, à própria vida humana.
Manifestantes na Carolina do Norte, em 30/5/2020
O governo patético de Trump embaraça o próprio Estado. Primeiro, veio o espetáculo pueril do homem mais poderoso do mundo agachado no bunker do porão da Casa Branca e determinando que as luzes fossem apagadas (para que ao manifestantes não pudessem enxergar o lado de dentro?). Em seguida, veio a ordem de atacar manifestantes pacíficos com armas químicas, para “limpar terreno” a sua caminhada até a “Igreja do Presidente” (à qual ele nunca comparece, e cujo pastor ele não se dignou a consultar), para que o fotografassem agarrado a uma Bíblia branca e enorme (que, muito provavlemente, ele nunca leu).
Trump, cujo único êxito alcançado na vida foi o prolongado reality-show “O Aprendiz”, aparentemente imaginou esta pirueta publicitária bizarra para entusiasmar sua base política de cristãos de direita e mostrar quão “religioso” é. Mas o tiro saiu pela culatra quando o bispo de Washington lembrou que Jesus pregou por paz e amor, não por guerra e vingança. No dia seguinte, até mesmo demagogos como Pat Robinson e a Coalizão Cristão, de ultradireita, falaram contra ele, enquanto o New York Times, anti-Trump, destacava em triunfo: “Popularidade de Trump cai onde ele não pode perdê-la: entre os evangélicos”.
Vale, em pausa, notar que a cristiandade, como todos os outros aspectos da civilização americana, é um nó de contradições, todas enrizadas no problema fundamental da “linha de cor”. Embora a direita cristã – conservadora e pró-Israel – tenha sido central no apoio a Trump, a Teologia da Libertação e a Igreja Negra são há muito base do Movimento pelos Direitos Civis, em favor da igualdade. Na verdade, George Floyd, o afro-americano assassinado (conhecido como Big Floyd e Gigante Gentil) era, ele próprio, um apaziguador comunitário, motivado pela religião. Também o são muitos dos manifestantes, negros e brancos, que entoam: No Justice, No Peace.
Os falsos gestos populistas de Trump podem ter ajudado a catapultá-lo ao poder em 2016 (graças a um sistema eleitoral fraudado pelos republicanos e apesar de ter recebido três milhões de votos a menos que sua adversária). Mas, como Abraham Lincoln certa vez notou, “é possível enganar parte do povo, o tempo todo; e todo o povo, parte do tempo – mas não é possível enganar o povo todo, o tempo inteiro”. Agora, o tempo de Trump acabou.
Manifestantes em Minneapolis, em 28/5/2020
5. Polícia, os cães ferozes da burguesia:
Para mim, a imagem mais emblemática dos protestos é a de um Donald Trump auto-iludido, agachado (como Hitlher) no seu bunker subterrâneo, com as luzes da Casa Branca desligadas, tremendo de medo e de raiva diante dos manifestantes do lado de fora e ameaçando atirar “cães ferozes (puramente imaginários) contra eles. Trump tem a mentalidade de doberman de um proprietário de ferro-velho no Queens. Ele é o descendente espiritual do capitão do mato Simon Legree, nos calcanhares da escrava Eliza, com seus cães, em Uncle Tom’s Cabin).
Cães ferozes da burguesia. É o que a polícia é paga para ser. (Mesmo que alguns políciais possam converter-se em pastores alemães amistosos, como aqueles que ajoelharam com os manifestantes). Seus caninos são os dentes afiados do Estado norte-americano. Junto com o exército, os policiais são a essêncial do Estado profundo real, que Marx definiu como “corpos especiais de homens armados, tribunais, prisões, etc”. (Opondo-os ao “povo armado” em guerrilhas democráticos).
Embora subserviente ao Estado burguês, este aparato policial, como a Máfia – com o qual muitas vezes se entrelaça – tem uma identidade corporativa, baseada na omertà, ou lealdade a um grupo estrito. Esta lei não escrita, de um notório “Muro Azul de Silêncio” [orig,: “Blue Wall of Silence”], evita que policiais, ao presenciarem abusos de seus “irmãos”, falem ou testemunhem contra eles. O muro azul garante a impunidade policial, e é organizado por meio de “sindicatos” policiais que, embora filiados à AFL-CIO, são violentamente reacionários, anti-trabalhadores e pró-Trump. O presidente do Sindicato Internacional de Policiais foi filmado usando um chapéu “Make America Great Again” e apertando a mão de Trump num encontro político, enquanto os manifestantes em Minneapolis exigem a remoção de Bob Kroll, o presidente do sindicato local de policial, amplamente criticado por sua apoio inabalável a colegas acusados de abusos.
O Muro Azul de Silêncio estende-se a uma rede que inclui promotores e mesmo prefeitos progressistas, como Bill Di Blazio, em Nova York. Ele defendeu policiais que atiraram seus carros sobre uma multidão de manifestantes, embora sua própria filha, mestiça, tenha sido presa por manifestar-se! Di Blazio, como seu antecessor reacionário, Rudy Giuliani, hoje conselheiro de Trump, sabe que seu futuro político depende da boa vontade do sindicato policial (até mesmo proprietários de ferro-velhos têm medo de seus cães ferozes).
Este acobertamento contumaz da polícia atingiu mesmo a cobertura inicial do New York Times sobre os violentos ataques da polícia contra a imprensa em Minneapolis e outras cidades. Em seu relato, o jornal escondeu-se por trás de uma estranha noção de “objetidade” (acuse ambos os lados) para evitar acusar policiais, observando o “muro azul de silêncio”, mesmo quando os repórteres foram vítimas. (Até agora, mais de mil ataques assim foram registrados). Usando a voz passiva, ao invés de nomear os abusadores reais (policiais racistas brutais), o jornal comparou um incidente isolado, em que um grupo de manifestantes atacou jornalistas da rede pró-Trump FOX, com ataques sistemáticos e generalizados da polícia contra membros da mídia [2].
Uma semana depois, este sacrossanto Muro Azul está começando a ruir. O governador de Minnesota foi forçado a ampliar as acusações contra Derek Chauvin, o assassino de George Floyd, para assassinato em segundo grau (por que não primeiro?) e a prender três de seus colegas cúmplices. Agora, eles começaram a se acusar mutuamente. Ameaçado por uma sentença de 40 anos de prisão e uma multa de ao menos US$ 750 mil, Tomas Lane e J. Alexander Kueng, ambos novatos, estão acusando Chauvin, o oficial sênior presente à cena, enquanto Tou Thao, o outro ex-oficial encarregado do caso, teria cooperado com as investigações antes da prisão de Chauvin [3].
Manifestante grita a policiais na frente da Casa Branca, em Washington, em 31/5/2020
6. Raça e Classe na história dos EUA
A sociedade estadunidense tem enfrentado inúmeras contradições desde o início, e essas contradições, enraizadas na raça e na classe, ainda hoje são disputadas nas ruas de mais de 150 cidades dos EUA. As revoltas atuais, interraciais desde o início, expressam a frustração popular de que, mesmo após séculos de luta contra a escravidão, depois de uma Guerra Civil sangrenta e fratricida em 1860 e de uma “Segunda Revolução Americana”, mesmo depois do movimento pelos Direitos Civis e das manifestações de rua dos anos 60, a vida dos descendentes de escravos negros ainda não seja segura no primeiro país que proclamou o direito humano à “vida, liberdade e busca da felicidade”.
Manifestantes cruzam ponte em Nova York, em 4/6/2020
A Revolução Americana do século XVIII adotou o princípio universal, conforme expresso na Declaração de Independência de 1776, de que “todos os homens são criados iguais e dotados de certos direitos inalienáveis”. No entanto, essa igualdade prometida foi simultaneamente contraditória ao incluir cláusulas na Constituição dos EUA que não apenas institucionalizaram a escravidão negra na República Americana, como também garantiram a predominância permanente dos estados escravistas do Sul no governo federal.
O sistema eleitoral criado pela Constituição dos EUA, com base nas populações masculinas relativas de vários estados, permitiu que os sulistas incluíssem seus escravos como “três quintos de um homem” (!). Assim, essa minoria de proprietários de escravos do Sul poderia superar o Norte, que era mais populoso, e dominar a União. Esse “compromisso” hipócrita foi o preço da unidade nacional em uma nação “meio livre, meio escrava”. Do mesmo modo, dez dos doze primeiros presidentes americanos eram proprietários de escravos, e sucessivos “compromissos” favoráveis aos interesses dos proprietários de escravos foram introduzidos à medida que novos estados foram adicionados à União, espalhando o império de escravos do Sul cada vez mais a oeste. Esta União Federal, precária e desigual, com base no domínio sulista, se manteve até 1860.
Memorial a George Floyd, em Minneapolis
No entanto, quando Abraham Lincoln, um moderado do Norte, se tornou presidente em 1861, a maioria dos estados escravocratas se separou da União, formou uma Confederação rebelde e declarou uma guerra nos Estados Unidos, buscando reconhecimento da Grã-Bretanha, principal cliente de algodão escravo da Confederação. Com frequência, ouvimos o argumento de que a guerra civil norte-americana — que durou quatro anos e registrou taxas de vítimas mais altas até do que a Primeira Guerra Mundial — não “dizia respeito à escravidão”. Mas dizia. Para esconder essa verdade vergonhosa, os sulistas brancos ainda a chamam de “Guerra entre os Estados”. No entanto, a guerra foi precipitada por abolicionistas brancos como John Brown, que ajudaram e provocaram rebeliões de escravos. Além disso, o grande número de jovens agricultores e mecânicos que se voluntariaram e até se alistaram para lutar pelo Norte sabia que estavam lutando pela liberdade humana, como indicava sua correspondência com as famílias e os jornais da cidade.
De fato, a Guerra Civil, esse impasse longo e sangrento, só foi vencida pelo Norte depois que Lincoln liberou o poder de luta dos escravos negros do Sul, ao declarar, enfrentando muita resistência, a Proclamação de Emancipação. Os escravos fugiram das fazendas e uniram-se aos exércitos da União, privando o sul branco de grande parte de sua força de trabalho negra. O Exército da União os alimentou, colocou-os para trabalhar de imediato e depois os matriculou em regimentos negros que lutaram com bravura e eficácia para derrotar a escravidão. De que maneira isso “não diz respeito à escravidão”?
Enquanto isso, na Inglaterra, os trabalhadores têxteis contrários à escravidão vinham boicotando a Confederação, exportadora de algodão. Karl Marx, em favor desse movimento, enfatizou a base de classe para uma expressão idealista da solidariedade inter-racial proclamando: “O trabalho na pele branca nunca poderá ser livre enquanto o trabalho na pele negra for marcado”. Os trabalhadores afro-americanos nos EUA não são mais “marcados” como seus ancestrais escravizados, mas até hoje a cor de sua pele os marca e torna vítimas de opressores, como chefes, proprietários e bancos, além da violenta polícia racista que, até agora, tinham assumido que poderia maltratar, e até matá-los, com total impunidade.
Manifestantes em Minneapolis, em 29/5/2020
Assim, enquanto a polícia continua atacando os manifestantes e enquanto Trump e seus seguidores pedem a militarização do país em nome da proteção à propriedade, lei e ordem, está claro que foi aberta uma brecha no Muro Azul do Silêncio. Ela protege os privilégios da classe bilionária contra o poder das massas trabalhadoras, que hoje enfrentam não apenas uma crise política, mas também a crise de uma pandemia em curso — a crise da pobreza e do desemprego em massa e a iminente crise climática da qual o Covid é um precursor sintomático.
Como os trabalhadores britânicos nos dias de Marx, os manifestantes brancos “privilegiados” de hoje, vítimas em menor grau do capitalismo americano, sabem em seus corações que eles “nunca poderão ser livres” e nunca estarão a salvo da violência do Estado até que as Vidas Negras realmente importem e as peles pretas não sejam mais “marcadas”. Eles sabem que “Negros e Brancos unidos na luta” (Black and White Unite and Fight) é a única maneira possível de frear o governo autoritário, de impedir o fascismo, estabelecer a democracia, instituir a igualdade de classes e enfrentar o futuro.

Notas de rodapé:
1) https://www.nytimes.com/2020/05/31/us/police-tactics-floyd-protests.html Diante de protestos contra o uso da força, a polícia responde com mais força. Vídeos mostram policiais usando cassetetes, gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha em manifestantes e espectadores. 
2) O grito de um repórter na TV ao vivo: “Estou sendo baleado! Estou sendo baleado!”
https://www.nytimes.com/2020/05/30/us/minneapolis-protests-press.html?
“De uma equipe de televisão agredida por manifestantes a um fotógrafo atingido nos olhos, os jornalistas se viram atacados nas ruas dos EUA. Linda Tirado, uma fotógrafa freelancer, ativista e escritora, foi baleada no olho esquerdo na sexta-feira enquanto cobria os protestos de rua em Minneapolis. Tirado é uma de tantos jornalistas em todo o país que foram atacados, presos ou ameaçados — algumas vezes pela polícia, outras por manifestantes — durante a cobertura dos levantes que ocorreram em todo o país após a morte de George Floyd em Minneapolis. Certos de que a mídia se atrasaria em reportar os casos, jornalistas foram atingidos.” 

Brasil pagará um preço incalculável por ter um presidente incapaz na pandemia

Brasil pagará um preço incalculável por ter um presidente incapaz na pandemia


Pandemia como a que estamos vivendo é tão rara e grave que pode ser tornar o evento histórico mais marcante de nossas vidas. Marcará o início de uma nova era. Em função disso, as decisões dos líderes no momento e nos próximos anos, em um mundo em fluxo, terão consequências sistêmicas em longo prazo para seus países e a ordem global.
Como afirmou recentemente Janan Ganesh, colunista do jornal britânico Financial Times, é provável que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha, junto com o presidente chinês Xi Jinping, a oportunidade de definir os fundamentos da era pós-pandemia. Cita como exemplo histórico o presidente americano Harry Truman, que chegou ao poder depois da morte de Franklin D. Roosevelt no fim da Segunda Guerra Mundial. Em circunstâncias normais, Truman dificilmente teria sido um líder relevante. O momento histórico em que se tornou presidente, porém, era atípico. Truman implementou o Plano Marshall para reconstruir a economia da Europa Ocidental e fundou a OTAN, tornando-se o líder americano de maior impacto da segunda metade do século 20. Por décadas, seus sucessores operaram dentro do sistema geopolítico que ele havia desenhado. Em um mundo em fluxo, líderes ao redor do mundo se tornaram altamente relevantes para suas nações naquele momento, desde Konrad Adenauer na Alemanha, Mao Tsé Tung na China até o premiê indiano Jawaharlal Nehru e o líder israelense David Ben-Gurion. Como observa Ganesh, “as circunstâncias contavam mais do que o indivíduo.”
Tal como em 1945, há cada vez mais evidência de que a atual pandemia será um momento de transformação, elevando governantes mundo afora, mais uma vez, à posição de líderes cujas decisões terão impacto em seus países por décadas. A resposta confusa dos EUA ao novo coronavírus sugere que a época marcada pela liderança global de Washington chegou ao fim, iniciando um processo complexo de transição para um sistema liderado por duas potências. A pandemia também deve simbolizar o fim da hiperglobalização, provavelmente com um maior papel do Estado na economia e taxas de crescimento mais baixas em países em desenvolvimento. James Crabtree, professor da Universidade Nacional da Singapura, escreveu recentemente que todo o conceito de Mercados Emergentes deve deixar de existir, com profundas consequências para a distribuição global de poder e o futuro do capitalismo. A crise sanitária global causará o primeiro retrocesso no desenvolvimento humano global em três décadas, causando aumentos bruscos nas taxas de pobreza e instabilidade política em numerosos países ao redor do mundo, alimentando a xenofobia, o nacionalismo e acelerando a crise do multilateralismo. Até a chegada de uma vacina, países terão que intercalar a flexibilização da quarentena com novos períodos de isolamento, sempre acompanhados de milhares de testes.
No meio disso tudo, nascerá uma ordem diferente, moldada pelas estratégias adotadas por líderes ao redor do mundo. Como as escolhas durante a atual pandemia deverão definir o contexto no qual futuros governos operarão, os países que atualmente têm líderes inteligentes e visionários provavelmente serão recompensados ​​desproporcionalmente —simplesmente porque, devido ao momento histórico, suas lideranças terão maior impacto. Países com governos eficientes sairão da crise mais unificados e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua capacidade de superar desafios complexos. Nesse países, cientistas e profissionais da saúde ganharão mais visibilidade e respeito, e há um debate público construtivo sobre como encontrar o equilíbrio certo entre aumentar a capacidade de monitoramento do Estado e a proteção da privacidade, como reabrir a economia sem pôr vidas em risco e como financiar os pacotes de estímulo econômico.
Países que atualmente têm maus líderes, por outro lado, podem acabar sendo punidos mais do que em circunstâncias normais. Além de gerir mal a pandemia e prorrogar a crise sanitária e econômica, eles não levam evidência científica em consideração e não atuam de maneira transparente. Deixarão de estabelecer as bases necessárias para iniciar a dolorosa adaptação de longo prazo. Ao invés de unificar seus países, deixarão suas sociedades mais divididas e desconfiadas, inviabilizando um debate público sobre os numerosos desafios, desde o futuro da educação, da economia, do emprego, do transporte e até do processo eleitoral em tempos de pandemia. Como sempre na história, países com lideranças inteligentes aproveitarão do mundo em fluxo para galgar posições, enquanto as nações à deriva perderão relevância.
Levará muito tempo para se poder avaliar as consequências geopolíticas da pandemia e o inevitável rearranjo na distribuição de poder entre nações. Porém, até agora, tudo indica que o Brasil será um dos grandes perdedores geopolíticos deste momento histórico. Quando o Brasil não foi nem sequer convidado para lançar, em abril, a iniciativa “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento, Produção e Acesso Equitativo a Diagnósticos, Tratamento e Vacina contra a Covid-19”, que reúne Governos, organizações internacionais, fundações e empresas privadas, revelou-se ali uma irrelevância internacional do Brasil que pode ser o novo normal pós-pandemia —e que demoraria anos para ser revertida. A triste realidade é que, neste momento, o Brasil traz muito pouco à mesa dos debates sobre os maiores desafios que a humanidade enfrenta. É relevante apenas no sentido em que causa preocupação dentro e fora do país. Além das muitas mortes que poderiam ser evitadas com uma resposta mais coerente e baseada em evidências científicas, o Brasil pode chegar a pagar um preço muito maior, por muito mais tempo, do que a maioria acredita.
Informações sobre o coronavírus:
O mapa do coronavírus no Brasil e no mundo: assim crescem os casos dia a dia, país por país;
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Militares, ciências, Educação Popular.

Militares, ciências, Educação Popular.


A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lógicas ou empíricas. Segundo os defensores daquela cultura imaginária derreteram-se as formas sociais e políticas  definidas nas Luzes e nas Revoluções inglesa (século 17), norte-americana e francesa (século 18). A ordem moderna estaria em questão, sobretudo instituições como o Estado.  Com a globalização – outro dogma assumido sem muitas perguntas por acadêmicos, políticos, jornalistas –   vieram as exéquias dos países que exigiam para si e seus amigos ou inimigos o poder soberano. Outro dogma: se não existem direitos individuais e coletivos garantidos pelo Estado democrático – conquista das revoluções mencionadas –  seria preciso privatizar os serviços públicos. A sobra do poder soberano só pode manter duas funções: seguir o mercado, em especial o financeiro, e reprimir levantes populares contrários aos ditames das bolsas de valores.
A receita foi aplicada na Europa, mesmo por administrações “de esquerda”, nos EUA por governos “democratas”, na Ásia, África e América do Sul. A pandemia atual (outras com certeza podem ocorrer) é potenciada pela urbanização inédita da vida humana. Seu início mais forte vem do século XIV, mas ela foi acelerada desde o fim da Segunda Guerra. Bilhões de seres humanos se dirigiram para as periferias na busca de sobrevida. É dado histórico: a concentração populacional agravou as várias pestes europeias e mundiais como é o caso da influenza.  Prover serviços para tais massas (água, esgoto, saúde, educação, segurança, alimentos, cultura, tecnologia) exige muito recurso técnico, humano, político, financeiro. Com as instituições públicas corroídas pela privatização e perdões de impostos para grandes empresas e fortunas, o caixa dos Estados fica à míngua. As massas tangidas rumo às megalópoles, ali postas em tugúrios sem espaço para respirar são as maiores vítimas da morte e da vida sem amanhã. Os poderes urbanos sempre foram tomados pelas “inesperadas”  doenças que matam mais do que em muitas guerras. Urge repensar os pressupostos lógicos, jurídicos, políticos e científicos das doutrinas mencionadas no início, retornando ao poder de Estado e reconfigurando os seus três monopólios: o da norma jurídica, da força, dos impostos. Sem tais providências milhões perecerão ao desabrigo. Chegaremos quase mortos ao reino da natureza bruta, onde todos são os lobos de todos.  Aliás, a frase do Leviatã não veio até Hobbes por acaso. Tradutor da Guerra do Peloponeso, ele sabe o quanto numa endemia – como a que levou Atenas à ruína– os laços entre humanos se degradam rumo à ferocidade. [I]
Elias Canetti comenta a passagem de Tucídides em Massa e Poder. Ele considera a epidemia um caso exemplar das massas sob ataque. Segundo Canetti os eventos que reúnem massas no mundo moderno pertencem à categoria das hordas em fuga ou em perseguição. Um ponto relevante trazido por Maclleland [II] é que a biologia, estratégica para compreender as pandemias, assumida no pensamento de Canetti não se aproxima de Darwin. Ponto estratégico pois muitas doutrinas sobre as massas e as elites, sobretudo as que defendem uma suposta meritocracia na educação, assumem de forma direta ou sub-reptícia a tese de que os “inferiores” caem vítimas das doenças, miséria, ignorância em processos “naturais” onde são escolhidos os melhores. Assim, sacralizam-se os genocídios modernos. Não. A biologia próxima ao pensamento de Canetti encontra-se em Pasteur. Cito Maclleland: “Toda a teoria das massas é ligada a números; multidões são contadas aos milhares e as massas aos milhões; a teoria das multidões em suas formas modernas teria sido desnecessária, talvez impossível, sem a consciência da vida fervilhante das grandes cidades, num mundo cuja população aumenta sem cessar e premido por espaço. Canetti pensa que a origem de tal ‘milhão mágico’ vai além da urbanização e crescimento populacional com a descoberta (...) de que o mundo já foi superpovoado em grau inimaginável por massas de bacilos hostis que lutam com o homem (...) viver agora é viver entre incontáveis milhões; multidões estão em toda parte e exigem a atenção das ciências”. [III] 
No interior da natureza as massas existem e se aglomeram, são dizimadas e ressurgem nos quatro elementos. Não é diferente com o ser humano. Daí, digamos, a enorme dificuldade para estabelecer isolamentos profiláticos nas cidades superpovoadas durante as pandemias. Restringir grupos em espaços limitados vai contra o que ocorre no plano físico, biológico, psicológico e social que, todos eles, moldam e são moldados pela atividade técnica dos homens. Ocorre mesmo que tal restrição pode trazer resultados tremendos. Canetti mostra que o interior das massas é uma espécie de reino natural hobbesiano. Concentradas em pequenos espaços os seus embates crescem, a violência e o medo as seguem. Não é também acidente que os alemães tragados pela Primeira Guerra Mundial, diminuído o seu território, passaram a delirar com espaços cada vez mais amplos. A busca frenética do Lebensraum os levou ao assassinato de seis milhões de judeus, ciganos, homossexuais,  milhões de guerreiros germânicos, franceses, ingleses, soviéticos. Concentrar massas em espaços pequenos serve como estopim de ódios, ideologias ressentidas que, para serem momentaneamente saciadas exigem a plena adesão dos grupos e indivíduos à massa que opera por meio das hordas. Para atingir tal fim líderes assassinos incentivam a geração de massas virulentas. Mas precisam reprimi-las para que sigam o rumo favorável ao controle político. 
Um elemento essencial na urbanização sofrida pela Humanidade reside no excesso concedido às políticas de repressão das massas. Agora mesmo no Brasil milhões de pessoas sem emprego passam fome e perdem esperanças de sobrevida. Surgem na imprensa “avisos” do Ministério Público sobre “vandalismos” e “saques” que apavoram o comércio, os bancos, as indústrias. [IV] Comoções sociais são prognosticadas e as culpas do perigo são jogadas sobre as multidões famintas. Nenhuma novidade em tal comportamento das elites seguidas pelas classes médias do mundo inteiro. Aliás, desde o começo da suposta civilização cristã e ocidental as massas foram apresentadas como perigo eterno a ameaçar as “boas sociedades” e seus regimes políticos. Mas com a concentração urbana, na passagem do feudalismo para o Estado provido de um centro de poder, a polícia foi inventada, bem como os Exércitos burocráticos, máquinas de matar no aparelho público. Começa a cultura da repressão planificada contra as massas pobres, as “aves de rapina” no dizer de John Locke, liberal mas não o bastante para tolerar insurreições populares. [V]
Dos três monopólios do Estado moderno – norma jurídica, impostos e força física – o último se evidenciou cada vez mais necessário para manter os outros e o domínio no poder social e político. No Brasil o monopólio das armas não se estabeleceu de imediato com a Independência. O costume dos fazendeiros, cujos exércitos privados (os esquemas da capangagem) ajudavam a definir o mando nos municípios persistiu na Guarda Nacional sob seu controle, agora como Coronéis. Forte resistência ao Exército Nacional veio em nome de um pretenso programa “federativo” para reiterar a sua força e dominação sobre populações pobres.  Mesmo após a implantação do Exército o coronelismo se mantém e gera déficit democrático nas entranhas do país.
O Exército, desde o seu início, apresenta uma característica intelectual importante. Existem estudos sobre o uso, nele,  das ciências e das técnicas. Um clássico descreve com acuidade os primeiros passos da república e a importância do positivismo na formação das lideranças militares. A releitura de Ivan Lins faria muito bem aos militares hoje silentes diante de um ministro da Fazenda que se gaba de ter lido oito livros sobre cada processo de reconstrução nacional na Europa. A formação de um militar de alta patente nos inícios da república compreendia a matemática, a física, a química… a biologia e outros setores da pesquisa. [VI] Além do culto à ciência os militares defendiam a laicidade estatal e o predomínio do poder civil. Durante a Questão Militar que, seguida pela Questão Religiosa acelerou a queda do Império, ocorre o caso Senna Madureira. Este se desdobra em dois episódios: primeiro veio a atitude do Tenente-coronel Senna Madureira contra a contributo ao montepio militar. Punido, ele traz no ano seguinte para a Escola de Tiro o jangadeiro Francisco José do Nascimento (alcunhado Dragão do Mar que se recusou a transportar escravos). A homenagem causa a punição de Madureira. Como fruto da penalidade segue a proibição para os militares discutirem assuntos nacionais na imprensa. A ebulição foi grande e no dia 2 de fevereiro de 1887 Benjamin Constant, no Clube Militar, defende a subordinação da farda ao poder civil. Ivan Lins destaca o pronunciamento: “Se, no regime democrático é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar os abusos e as prepotências”.   
Volto à pandemia e às massas. O projeto positivista para o Brasil, em termos educacionais, exigia que as cidades concentradas no Atlântico, sem maiores extensões para o interior, se aplicassem à ciência, técnicas e, last but not least, ao pensamento laico. O mesmo ocorre no Exército. Apesar de seu programa ditatorial (que os adeptos afastavam de ditaduras como as bonapartistas) o positivismo valoriza os debates públicos, a livre imprensa e a separação do Estado e das igrejas. Se teve enraizamento nas elites militares e civis, a doutrina comteana não atingiu massas urbanas ainda sob o manto eclesiástico. A guerra surda para atingir multidões foi vencida pela Igreja. Esta última, desde o final do século 19 orientou seu controle social pelo movimento de massas. Nos anos 30, em imensas procissões dos Congressos Eucarísticos, fica patente o uso de multidões pela Hierarquia católica para manter o controle da sociedade. [VII] Os positivistas  foram contrários à instauração da universidade. Eles receavam com receio  que a Igreja a controlasse. Os seguidores de Comte no Brasil valorizam institutos de pesquisa e a educação popular nos campos técnicos e científicos.  A defesa da ciência e do laicismo tem como centro elites acadêmicas e militares. Vence o programa da Igreja, com a presença de católicos conservadores no Ministério da Educação durante décadas. É o caso de Alceu Amoroso Lima e seus companheiros da Revista A Ordem. O programa positivista de ampla educação popular nos setores científicos foi derrotado. O país não seguiu no rumo de valorizar a ciência e os militares positivistas permaneceram ativos sobretudo nas instituições de ensino das Forças Armadas.  Estava posta a sementeira do ódio à ciência no país. A ditadura Vargas protege o plano da Igreja e com ela se protege dos “inimigos”. Em vez de preparar uma administração das massas pelo ensino científico ocorre a reafirmação do autoritarismo,  do culto ao ditador, da perseguição aos defensores do ensino laico. Simbolicamente a consagração do Brasil ao Sagrado Coração – o Cristo Redentor – definiu os rumos do poder teológico-político, inimigo da ciência, propagador de milagres na redução do povo ao estatuto de  rebanho.
Mesmo na ditadura de 1964 os militares não abandonam totalmente a ciência e a técnica. Projetos não raro grandiosos foram iniciados com ajuda de universitários. Mesmo com a caça aos “comunistas” dos campi, os militares guardaram núcleos de pesquisa. Apesar das intervenções contra as ciências humanas, elas foram mantidas e, em alguns casos, incentivadas. A fundação da Unicamp evidencia a ambiguidade do governo ditatorial: de um lado, persegue os opositores acadêmicos ao regime e, de outro, dialoga com o saber  universitário. [VIII] E assim foi nos anos em que o governo se tornou oficialmente civil, após a ditadura. Ressalto um ponto: durante os últimos decênios os militares pareciam adstritos às funções constitucionais. Eles continuaram seus estudos científicos e técnicos. A Embraer marca semelhante rotina, o trato dos pesquisadores das Forças Armadas com os campi civis teve progressos significativos.
No entanto, os militares ligados às ciências e os acadêmicos estão limitados a um público diminuto, se considerarmos as massas populacionais brasileiras. A ciência e a técnica, longe dos projetos positivistas e dos liberais paulistas que fundaram a USP, não chegou às camadas populares. No mesmo ritmo, as técnicas de comunicação e controle popular se aprimoraram no áudio visual, na TV, na telefonia (primeiro os e-mails, depois o Torpedo, depois as redes “sociais”, o Whatsapp e similares), gerando uma potência persuasiva e de comando inédito na história humana. Sem conhecimentos científicos pelo menos medianos, massas passam a “opinar” do único modo costumeiro: pelo ouvir dizer sem análise lógica ou empírica. As universidades e laboratórios, embora produzam conhecimentos essenciais para a sobrevivência e o progresso social, encontram-se isolados das multidões  que consomem técnicas de comunicação persuasiva e controle. Tal barreira pode ser notada sempre que ocorrem cortes de recursos financeiros para a pesquisa científica e técnica, algo praticado desde os governos FHC, Luiz Inácio da Silva, Dilma Rousseff. A subtração de meios para incentivar as investigações (em todas as especialidades) não enfrenta resistência popular, muito pelo contrário. Diminui, assim, de modo acelerado a potência do conhecimento no trato com as massas no território nacional.
Em outra vertente os militares passam a ser chamados a intervir em assuntos não previstos em sua função, sobretudo na repressão policial. Gradativamente eles são postos em operações desastradas nas periferias urbanas, manobras que autorizam procedimentos contra os direitos civis. No Rio de Janeiro, na luta contra narcotraficantes, foi comum juízes decidirem sentenças e processos instalados em caminhões do Exército. Na exata medida em que os governos civis se fragmentam e perdem legitimidade por atos corruptos (desde a Emenda da Reeleição presidencial) os militares são chamados para resolver assuntos próprios da Justiça, polícia ou demais instituições civis.
Volto à questão educacional e às massas. Tanto os positivistas quanto os liberais que idealizaram o ensino universitário (ainda cito a USP) consideravam que a pesquisa superior deveria ser praticada por elites do saber, mas com obrigatória difusão entre a massa populacional, múnus do Estado. Os militares positivistas conheciam de cor e salteado o programa do Catecismo Positivista.  A Biblioteca do Proletário elenca 150 títulos para leitura dos setores populares. A coleção se divide em quatro setores, entre os quais história, ciências, poesia. Autores indicados? Buffon, Broussais, Lavoisier, Condorcet, Carnot, Lagrange, Bichat, Blainville, Navier, Poinsot, Aristóteles, Santo Agostinho, Cabanis, Gall, Barthez, Dante... O fato de ser a lista dirigida aos proletários mostra o ímpeto positivista. O Estado deveria cuidar para que as multidões saíssem do reino da superstição, caminhando para o saber que, embora não rigoroso como o dos pesquisadores e cientistas,  preparava para o pensamento, o controle das informações. [IX] 
Ao longo da república militares e liberais civis pagaram um lip service ao programa de educação das massas. Apesar dos progressos, conseguidos com muitas lutas, sacrifícios, heroísmos, o ideal não se efetivou. Salvo iniciativas como as lideradas por Paulo Freire e Darcy Ribeiro, inspirados em Anísio Teixeira, pouco se fez naquele setor. Mas os coletivos civis e militares ligados à pesquisa científica desenvolveram esforços naquele plano. Com o regime de 1964 houve uma grande abertura para o ensino popular. Em vez das antigas escolas rigorosas, a rede pública  acolheu alunos aos borbotões. Mas o Estado não se adequou à nova efetividade. O número foi imenso mas o programa educacional não foi pensado de modo eficaz. Além disso, dado o número espetacular somado à  ineficiência do ensino, surgem os cursinhos preparatórios ao vestibular para os que pudessem dispender tempo e dinheiro. O vestibular se apresenta como barreira para os “negativamente privilegiados” (termo de Max Weber).  Tais cursinhos se organizam em termos capitalistas gerando “universidades. A indústria das instituições “universitárias”  passa a integrar a Bolsa de Valores, um negócio a mais.
As universidades públicas perceberam muito tarde o sistema injusto dominado pelo vestibular. Surgem propostas para diminuir o desigual acesso ao campus, aparecem as cotas para remediar a injustiça. Jovens pobres, negros, indígenas são acolhidos mas não o bastante para gerar capilaridade entre os campi e as massas. Já era tarde para definir o elo entre os povos e os pesquisadores acadêmicos. A massa desprovida de saberes mas com acesso imediato aos instrumentos de comunicação já se formara. E tal massa, sem informação, não sabem que os celulares e computadores exigem muito esforço intelectual. Ela passa a difundir mensagens misólogas em escala inusitada. E tudo é simultâneo ao predomínio na “opinião pública” de pastores, ideólogos, políticos fascistas que atacam a ciência e negam o saber.
Os militares, embalados pelo sucesso relativo de suas intervenções repressivas nas periferias, começam a esposar teses da extrema direita inimiga do conhecimento.  Com a eleição de Bolsonaro surge a face religiosa obscurantista que promete perenidade no poder desde que a pauta eclesiástica, protestante ou católica, seja obedecida. Assim, retornamos ao período Vargas, mas com hegemonia “evangélica”. Igrejas fundamentalistas assumem algo impensável no protestantismo dos século 16 e 17, a guerra, antes privilégio católico, contra a ciência.
Acrescento o conúbio do governo Bolsonaro – e seus economistas neoliberais que desejam tudo privatizar – e militares. Pela primeira vez na história brasileira as pessoas fardadas assumem uma atitude cordial diante de discursos que desejam reduzir a laicidade e os deveres do Estado para com os serviços públicos. Termino: as Forças Armadas não continuam a politica pretérita de defender a ciência e a técnica, aspirando à educação das  massas. Hoje os militares aproveitam oportunidades para sua vida pessoal nos governos, defendem pautas corporativas e não têm mais uma doutrina de ciência e tecnologia para o Estado brasileiro. No recente e infausto vídeo da reunião ministerial, assistido por toda a Nação, vimos o pensamento político das Forças Armadas estraçalhado pelo Ministro da Economia. “Li oito livros sobre cada processo de recuperação econômica na Europa”. Na universidade que se preza tal assertiva impediria um mestrando de ir à Banca, tal a pobreza exibida sem pejo. Mas o general ao lado, responsável por um Plano de recuperação econômica para o Brasil pós epidemia, calou-se, não forneceu ao pedante ministro nenhuma resposta à altura. Assim, infelizmente, os militares brasileiros deixam de valorizar a ciência ao obedecer pastores ignaros ou economistas que defendem o interesse privado e não o estatal. Eles servem  como instrumento para que velhas raposas retornem ao controle de cargos e verbas, como  o Centrão de Roberto Jefferson. Em vez de diminuir, aumenta a distância entre geradores de saber e a massa popular. Esta, por sua vez, segue como Destino uma vocação letal: a de se prestar como elemento de barganha de poderosos e permanecer sem os saberes que lhe permitiriam o salto do estatuto de vulgo (que Spinoza seja relido...) para o da cidadania. Os próximos tempos tornarão ainda mais triste o papel das Forças Armadas, levando para bem longe o sonho de Benjamin Constant: o de fazer o setor militar servir governos civis, e não vice-versa. E fazer da ciência o fundamento de um país soberano.  Ouvimos a cada dia maior número de militares que perdem a sua herança histórica, a vituperar como simples militantes de extrema direita a Justiça e o Parlamento. E temos os ensaios de golpes em prol de obscurantistas delirantes postos a serviço de seitas evangélicas inimigas da ciência e dos direitos humanos. Assim, o gráfico que indica o grau civilizatório do braço armado no poder estatal brasileiro mostra acentuada queda. Rumo à barbárie.   No Clube Militar está sendo retirado o retrato de Benjamin Constant. Em seu lugar chega a efígie do General Augusto Heleno Ribeiro Pereira. Ele marca os novos tempos dos golpes, da repressão, de intimidação dirigida aos poderes republicanos e, sobretudo, da intolerância contra a ciência.






[I] Uma passagem significativa da tradução hobbesiana de Tucídides. As pessoas, na epidemia, nada temiam dos deuses “nor laws of men awed any man, nor the former because they concluded it was alike to worship or not worship from seeing tha alike they all perished, nor the latter because no man expected tha lives would last till he received punishment of his crimes by judgement”. Thucydides, The Peloponesian War 53 , The complete Hobbes Translation (London, University of Chicago Press, 1989), página 119.
[II] Cf. J.S. McLelland : The Crowd and the Mob, from Plato to Canetti (Unwin Hyman, 1989).
[III] Mclelland, página 294.
[IV] Por exemplo o sugestivo alerta do Ministério Público diante dos eventos “indesejáveis”da pandemia trazida pelo coronavirus : “Promotoria alerta Covas sobre riscos de saques e vandalismo em São Paulo”:   https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/20/promotoria-alerta-covas-sobre-riscos-de-saques-e-vandalismo-em-sp.htm. Sobre o uso da força pelos Estados modernos, cf. Ann L. Phillips, “Prosperity and Monopoly on the use of force” no link  https://library.fes.de/pdf-files/iez/12036.pdf
[V] Maria Sylvia Carvalho Franco:  “All the World was America”, John Locke, liberalismo e propriedade como conceito antropológico”, Revista USP, Dossie Liberalismo/Neoliberalismo, http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25952
[VI] Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964). Um estudo significativo e útil foi publicado por Maria Isabel Moura Nascimento “O Império e as primeiras tentativas de organização da Educação Nacional (1822-1889) in http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/periodo_imperial_intro.html#_ftnref1
[VII] Romualdo Dias:  Imagens de OrdemA doutrina católica sobre autoridade no Brasil. . Ed. Unesp.
[VIII] Um clássico sobre a Unicamp é o livro do saudoso Eustaquio Gomes: O MandarimA sua leitura permite notar a enorme diferença entre a política ditatorial e o que o ocorre hoje no governo Bolsonaro.
[IX] Cf. Robert Fox : The savant and the State: Science and Cultural Politics in Nineteenth (The Johns Hopkins University Press, 2012).

Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).

Militares, ciências, Educação Popular.

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