Não vai ter protesto: evolução tática da repressão durante a Copa
De junho passado até o junho da Copa do
Mundo o Estado brasileiro teve tempo e ocasiões suficientes para aprender a
lidar com os protestos de rua que mudaram a conjuntura política do país.
Aprenderam que os métodos até então convencionais de repressão às
manifestações, como o uso indiscriminado de bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, balas de borracha, prisões por falsos
flagrantes e outros expedientes do tipo não estavam sendo suficientemente
eficazes para “pacificar” as ruas. A prova disso é que, após milhares de
manifestantes feridos ou gravemente feridos, centenas de presos, alguns mortos
e muito ataque sujo por parte dos aparelhos de relações públicas da repressão,
isto é, da mídia corporativa, a greve dos professores no Rio de Janeiro ainda
arrastava dezenas de milhares às ruas; as greves selvagens pipocavam por todo o
país, angariando apoio de outras categorias e o MTST parava São Paulo novamente
através de passeatas que concentravam mais de vinte mil pessoas. “O que estava
falhando?”, perguntavam-se editorialistas, empresários, prefeitos, governadores
e o alto-comando das suas respectivas polícias. A Copa estava chegando e o povo
não saía da rua. Era preciso adotar uma nova estratégia.
Observando atentamente os meios
empregados pelas forças de repressão contra os protestos em diversas cidades
brasileiras após o início da Copa do Mundo, apreendemos as lições extraídas
pelo Estado. Não, os meios coercitivos em si não estavam errados. Eram apenas
dispostos de maneira equivocada, ou faltavam-lhes a intensidade e o momento
adequados para que o objetivo fosse alcançado. Faziam falta novas disposições
táticas aos grupamentos policiais para que os protestos deixassem de dispor de
condições físicas, jurídicas e psicológicas para acontecerem. Foi montada,
assim, a estratégia do Não vai ter protesto, cujas combinações táticas
analisaremos a seguir, utilizando, para isso, depoimentos de manifestantes,
reportagens publicadas nas mídias corporativas e ativistas, as minhas
observações durante os protestos, além de fotos e mapas que ilustram o estado
de “segurança” criado para a Copa (e além?…).
TÁTICA 1: O CERCO
VIA “POLICIAMENTO DESPROPORCIONAL”
Esta tática consiste no emprego de
forças de segurança, em especial tropas do Batalhão de Choque – equipados com
máscaras, armaduras (ao estilo “Robocop”), cães, armas elétricas e coisas do
tipo – em um número superior ou, se possível, muito superior ao número de
manifestantes em um protesto. O objetivo precípuo desse expediente é cercar por
todos os lados os manifestantes em um momento em que o ato ainda conta com
poucas dezenas de pessoas, forçá-los a passar pelo cerco policial para chegar
ao local de concentração dos atos – ou mesmo negar o acesso aos que desejam
entrar –, controlar todos os movimentos das passeatas, podendo deixá-las
imobilizadas quando necessário, além de intimidar tanto os que participam
quanto os que observam o protesto. Esta quantidade e disposição das forças de
repressão preparam o terreno para os próximos passos.
Vimos esta tática ser empregada pela
Polícia Militar em diversos atos desde o início da Copa, ocorridos em
diferentes estados brasileiros. Os primeiros foram na capital paulista, no dia
da abertura do Mundial, 12 de junho. Pela manhã, o cerco foi realizado para
impedir a realização do protesto, convocado pela frente Se Não Tiver Direitos,
Não Vai ter Copa, com concentração na Estação Carrão do Metrô. À tarde, o sítio
policial seria contra o protesto convocado pela CSP-Conlutas em frente ao
Sindicato dos Metroviários, em desagravo à morte dos 13 operários em obras
relacionadas à Copa e pela readmissão dos 42 trabalhadores demitidos após a
greve dos metroviários. O site da Rede Brasil
Atual relata
assim o cerco:
“Convocadas para a manhã de hoje (12)
na zona leste de São Paulo, as duas manifestações de rua que pretendiam
criticar a realização da Copa do Mundo horas antes da abertura do torneio foram
dura e inexplicavelmente reprimidas pela Polícia Militar. Com um efetivo
multitudinário, a corporação sitiou toda a região no entorno das estações
Tatuapé e Carrão do Metrô, onde os manifestantes haviam combinado de se
encontrar para saírem em passeata. Dezenas de caminhões do choque, viaturas e
motocicletas estavam apoiadas por helicópteros e cavalaria. A violência das
forças de segurança foi tão grande que as marchas sequer chegaram a ocorrer.”
(“Violência
da PM censura manifestações contra a Copa em São Paulo“, por Tadeu Breda, 12/06/2014, Rede
Brasil Atual)
Em Belo Horizonte, no dia 14 de junho,
foi a vez do ato convocado pelo COPAC (Comitê dos Atingidos pela Copa), com
concentração na Praça Sete, sofrer o cerco. O relato de Larissa Veloso,
ativista do coletivo Tarifa Zero, indica que centenas de policiais da Tropa de
Choque e da Cavalaria cercavam a concentração da manifestação, impediam as
pessoas de se juntar aos que já estavam na praça e intimidavam os que desejavam
sair de lá. Após ser impedida de chegar ao ato por uma rua, Larissa tenta um
outro acesso e interpela o policial que igualmente bloqueava a praça:
“– Com licença, o que está acontecendo?
– Não pode passar.
– Mas e como eu faço para chegar na Praça Sete?
– Dá a volta, aqui não pode passar.
– Não pode passar.
– Mas e como eu faço para chegar na Praça Sete?
– Dá a volta, aqui não pode passar.
Dei a volta e tentei pela rua Rio de
Janeiro. Dei de cara com o mesmo cordão de armamentos.
– Moço, por favor, como eu chego na
Praça Sete?
– Não está podendo entrar não.
– Mas ninguém está podendo chegar até a praça? Por quê?
– Se você quer sair lá na Afonso Pena, é só contornar.
– Não, eu não quero contornar a praça.
– Onde você quer ir?
– Eu quero ir na manifestação.
– Então não pode passar.
– Não está podendo entrar não.
– Mas ninguém está podendo chegar até a praça? Por quê?
– Se você quer sair lá na Afonso Pena, é só contornar.
– Não, eu não quero contornar a praça.
– Onde você quer ir?
– Eu quero ir na manifestação.
– Então não pode passar.
Os cerca de trezentos manifestantes que
estavam na praça permaneceram cercados até o final do jogo, que ocorria no
estádio do Mineirão, quando, então, os policiais finalmente abriram o acesso
para a Avenida Amazonas, utilizado pelos manifestantes para seguirem, após
deliberação, para a praça da Estação.
Cerco via “policiamento desproporcional” ao protesto do dia 14/06/2014,
na Praça Sete, Belo Horizonte. Foto: Larissa Azevedo.
Ainda veremos, nas seções seguintes,
outros exemplos da tática do cerco via “policiamento
desproporcional”,
objetivando, com isso, demonstrar como ela se articula a outras táticas para
impedir a realização dos protestos. Mas, antes de passarmos para o próximo
esquema tático, é preciso oferecer o devido destaque ao cerco exemplar montado
pela PM de São Paulo na noite do dia 01 de julho, durante o Debate Democrático Pela Libertação dos Presos Políticos, um ato público organizado pela frente
Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa. Eis o mapa do cerco, elaborado pelo
grupo Advogados Ativistas, grupo que teve, inclusive, alguns de seus
integrantes agredidos e detidos pela polícia:
Disposição das forças táticas da PM de São Paulo durante o cerco via
“policiamento desproporcional” montado para impedir a realização de um
debate público no dia 01/07/2014. Mapa: Advogados Ativistas
O círculo amarelo indicado no mapa
acima não é uma célula da Al Qaeda descoberta em São Paulo. Tampouco é o bunker de Hitler sitiado pelos soviéticos.
Representa, simplesmente, o local onde se encontrava a mesa do debate público.
Esse mapa é a prova de que não há exagero quando fazemos alusão às táticas
militares de sítio aos protestos. Os mesmos Advogados Ativistas relatam como o cerco
foi montado e a maneira como procedeu:
“Antes mesmo do início do debate, a
praça já se encontrava totalmente sitiada pelas seguintes forças militares:
polícia militar ordinária, cavalaria, tropa de choque, Rocam e “tropa do
braço”. (…) O local e todos os acessos a ele encontravam-se sob controle
completo da PM, de modo que para se aproximar dali era preciso submeter-se à
revista pessoal, apresentação de documentos e fornecimento de dados pessoais.
Uma situação em que o livre direito de manifestação foi completamente
restringido pelo Estado, sem qualquer justificativa para a flagrante
desproporção entre o efetivo da PM e a população.
Evidentemente, tal efetivo estava ali
para garantir que o ato fosse esvaziado pela intimidação. A perversidade do
Estado mais uma vez deixou a todos perplexos com um controle social em tudo
injustificável, no impedimento do exercício de reunião, manifestação e
liberdade de pensamento.”
É justamente disso que se trata: o
direito constitucional de livre reunião e o direito de ir e vir suspensos pelo
emprego de forças policiais militarizadas. A esse estado de coisas costumava-se
definir como estado de exceção. Então chamemos as coisas como elas são.
TÁTICA 2 (OFFENSIVE):
O ATAQUE POLICIAL PREVENTIVO
Outra tática utilizada pelas forças de
repressão do Estado, dessa vez para encerrar as manifestações sob ordem do
comando da operação, é o ataque policial preventivo, que é o uso da violência da polícia,
mediante bombas de gás,spray de pimenta, balas de borracha e prisões
arbitrárias antes mesmo que os manifestantes tenham provocado qualquer distúrbio
à “ordem” (afora o fato de exporem no espaço público seu inconformismo para com
a ordem). Esta tática, por si só, não é nenhuma novidade, uma vez que a
polícia, desde sempre, é quem costuma provocar os distúrbios e causar a
violência que, em seguida, busca controlar, a um só tempo legitimando seus
abusos e deslegitimando os protestos. A novidade está na combinação do ataque policial preventivo com o cerco via
“policiamento desproporcional”. Encurralados por um contingente
policial muito superior ao número de presentes nos atos, os manifestantes,
atacados preventivamente, contando feridos e detidos, perdem rapidamente a
disposição de permanecer no protesto e dispersam, encerrando-se assim a
manifestação no momento desejado pela polícia, e não pelos manifestantes.
A matéria da Rede Brasil Atual, que reportamos anteriormente, relata
que, em São Paulo, no dia 12 de junho,
“[a]ntes da chegada dos manifestantes,
três linhas de soldados do batalhão de choque já estavam em formação de ataque
do lado de fora da estação, com escudos, armas e bombas de gás lacrimogêneo.
[…] Após um leve bate-boca entre soldados e cidadãos revoltados com a magnitude
do aparato policial, às 10h15, a tropa deu início à ofensiva, lançando bombas
de gás lacrimogêneo contra as não mais de 50 pessoas que, então, estavam por
ali. Ao menos uma delas foi detida. […] Depois da correria, os manifestantes
tentaram se reagrupar ao redor da estação Carrão do Metrô. E passaram a gritar
palavras de ordem contra os policiais que acabavam de agredi-los gratuitamente.
“Não acabou, tem de acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”, bradavam. A
reação da tropa não tardou, e veio com mais uso da força. Quinze minutos depois
do primeiro ataque, por volta das 10h30, uma nova investida policial acabou ferindo
uma jornalista da rede de televisão norte-americana CNN. A repórter foi
atingida no pulso por um estilhaço de bomba de gás lacrimogêneo e atendida por
socorristas voluntários do Grupo de Apoio ao Protesto Popular (Gapp) até a
chegada dos bombeiros.”
Após dois ataques seguidos contra os
manifestantes, que então já começavam a se dispersar, a PM resolveu agredir
deliberadamente as dezenas de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas
brasileiros e estrangeiros que registravam a operação. Às 10h40, um policial
sem etiqueta de identificação saiu detrás da linha de escudos e lançou uma
bomba de gás na direção dos profissionais. A RBApresenciou que, ao todo, contando com a
jornalista norte-americana, pelo menos cinco pessoas acabaram feridas por
estilhaços nos braços e nas coxas. Entre elas estava um morador de rua.
[…] Às 11h, uma hora depois do
pretendido início de um protesto que nunca aconteceu, os arredores da estação
Carrão estavam liberados. “A gente não conseguiu nem se ajeitar direito, nem
entrar na concentração, e eles começaram a dispersar totalmente. Fecharam as
ruas e lançaram bombas por todos os lados”, explica Marcela, militante do
coletivo Território Livre, um dos grupos que haviam convocado a manifestação.
“Eles quiseram ‘cortar o mal pela raiz’. Não deixaram nem que iniciássemos o
ato”.
A reportagem relata ainda que, no ato
seguinte, convocado pela CSP-Conlutas, o ataque preventivo da polícia também
ocorreu, impedindo que a manifestação acontecesse na rua:
“Não demorou para que outro grupamento
fortemente armado da PM viesse em sentido contrário e encurralasse na Rua Serra
do Japi as cerca de duas mil pessoas que haviam atendido ao chamado da
CSP-Conlutas. Revoltados com o acosso policial, jovens mascarados começaram a
hostilizar verbalmente a tropa, que respondeu descarregando sua munição. Então
instalou-se um confronto entre rapazes com pedras, que tentavam barrar o avanço
da PM com pequenas barricadas, e soldados com escudos, armaduras e artefatos
menos letais. Pelo menos um fotógrafo feriu-se com estilhaços em toda a perna –
mas não foi o único.
A situação se agravou quando, por volta
do meio-dia, a polícia avançou sobre os manifestantes que estavam postados
pacificamente diante do sindicato. Como a tropa não se sensibilizou com os
gritos de “Chega de bomba, de repressão, é meu direito estar na manifestação”,
os organizadores do protesto resolveram usar o carro de som para pedir que as
pessoas entrassem na sede do sindicato. “Estamos encurralados. Não temos
condições de enfrentar a PM”, apelavam os autofalantes. “Vamos abrir os
portões, entrar e dar continuidade ao nosso protesto lá dentro.” Os
manifestantes assentiram e continuaram tocando seus tambores no interior do
prédio. Lá, estavam a salvo das agressões, mas não dos efeitos do gás lacrimogêneo.
Sem a menor possibilidade de diálogo
com a PM, os organizadores do protesto decidiram, às 12h50, encerrar o ato. Ao
microfone, o presidente do Sindicato dos Metroviários pediu aos manifestantes
que ainda estavam na rua que adentrassem à sede da entidade para que, depois,
pudessem “negociar” sua saída com o comando policial.”
No Rio de Janeiro, no ato contra os
abusos da organização da Copa do Mundo, convocado para o dia 12 de junho, cuja
concentração foi em frente à igreja da Candelária, no Centro, e seguiu pela
avenida Rio Branco e o passeio até os Arcos da Lapa, o cerco via “policiamento desproporcional” ocorreu ao fim, no destino previsto
pelo ato, e não na sua concentração, conforme eu mesmo pude presenciar. E foi
também na parte final do protesto, já contando com o cerco, que o ataque
preventivo se deu. Aproximadamente meia hora após a concentração final do
protesto, quando ainda algumas centenas de manifestantes se reuniam e
confraternizavam pacificamente, um professor foi detido arbitrariamente. Sua
detenção despertou a solidariedade de outros manifestantes, que tentaram
resgatá-lo dos policiais, o que provocou novas detenções, outras tentativas de
resgate e, finalmente, o uso de bombas de gás pela polícia. No total, cinco
manifestantes foram detidos e, poucos minutos após o ataque, a manifestação já
estava completamente dispersa.
Um professor que participava do protesto contra a Copa é arrastado por
Policiais Militares durante o ataque preventivo, que pôs fim ao ato do dia
12/06/2014, na Lapa, Rio de Janeiro. Foto de autor desconhecido.
TÁTICA 3 (JOGADA
ENSAIADA): AS DETENÇÕES POR FALSOS FLAGRANTES COLETIVOS
Se dentro de campo o escrete comandado
por Luís Felipe Scolari tem mostrado pouca criatividade e certo descontrole das
situações de jogo, fora dele as forças da repressão aos protestos andam
esbanjando variações táticas para fazer valer a estratégia do não vai ter protesto. Além dos já abordados cerco via “policiamento desproporcional” e o ataque
policial preventivo, a Blietzkrieg da nossa Seleção de Chumbo (a “pátria
de coturnos”) se complementa ainda com as detenções de manifestantes mediante
falsos flagrantes coletivos, golpe que pode ser aplicado antes, durante ou
depois dos protestos de rua.
Uma ressalva importante: detenções por
falsos flagrantes são práticas corriqueiras das polícias do Brasil e do mundo
quando se trata de criminalizar as manifestações. Nos protestos de rua
ocorridos desde o início da Copa, acumulam-se os registros de manifestantes
detidos por tal ardil. A título de exemplo, durante a manifestação do dia 23 de
junho, convocada em São Paulo pela frente Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter
Copa, o professor e assistente de informática Rafael Marques e o funcionário da
Universidade de São Paulo, Fábio Hideki, foram presos arbitrariamente e
acusados com base em flagrantes forjados pela polícia. Fábio estava indo embora
do ato, já nas escadarias do metrô, quando, após uma explosão, foi detido pela
PM. Agora ele responde por porte de explosivos e formação de organização
criminosa, apesar de não ter sido encontrado nada dentro de sua mochila durante
a revista policial, testemunhada inclusive por advogados. Rafael Marques foi
preso sob a mesma falsa acusação de formação de organização criminosa e
incitação à violência. (o relato das prisões e o acompanhamento das tentativas
de libertação do sequestro de Estado ao qual os dois manifestantes foram
submetidos podem ser encontradosaqui na revista eletrônica Passa Palavra).
Se prender manifestantes por falsas
acusações já fazia parte do repertório da repressão, uma inovação tática, ao
menos pelo que eu saiba, é a modalidade dosfalsos flagrantes
coletivos,
isto é, contra vários manifestantes de uma só vez. Pois tal modalidade foi
empregada na repressão ao ato do dia 17 de junho, no centro do Rio de Janeiro,
dia do jogo Brasil x México. As arbitrariedades da polícia na prisão de
manifestantes foi tanta nesta ocasião, que nem mesmo a reportagem do jornal O Globo conseguiu dissimular os abusos. Em meio
a um texto que emprega o velho recurso dos sentidos depoimentos de pessoas
descontentes com os transtornos provocados pelo protesto – num exercício de
deslegitimação que consta no manual interno de redação do referido jornal –, a
notícia indica que
“Mais cedo, ainda na Candelária, local
da concentração, um grupo de oito estudantes da Uerj, com roupas coloridas,
rostos pintados de tinta preta e usando latas para improvisar uma bateria,
chegou fazendo uma performance. Quatro acabaram detidos, e as latas apreendidas
pela PM.”
(“PM detém
15 e usa gás de pimenta em protesto com cerca de 50 manifestantes“, por Antonio Werneck, O Globo,
17/06/2014)
Ignorando solenemente a prática do bom
jornalismo, a reportagem não nos deixa saber o motivo da detenção dos quatro
estudantes, mas dá testemunho da tática do cerco via
“policiamento desproporcional”, quando informa que
“Um protesto contra a Copa do Mundo,
que reuniu no máximo 50 pessoas, terminou com 15 manifestantes detidos, segundo
a Polícia Militar. Eles foram levados para a 21ª DP (Bonsucesso) e para a 22ª
DP (Penha). Além da baixa adesão, também chamou a atenção o forte esquema de
segurança: pelo menos cem policiais militares, de diversos batalhões, atuavam
no entorno da Igreja da Candelária, onde os ativistas se reuniam.”
(Por que foram detidos? A reportagem
não diz nada a respeito). Em seguida, a matéria relata um acontecimento
inusitado, do qual, para variar, não dá muitos esclarecimentos, salvo a certeza
de que, doravante, o direito constitucional de ir e vir só é válido desde que
não seja ir para ou vir de protestos. Lê-se que, “[n]o momento mais tenso da
manifestação, cerca de 30 pessoas que tentavam chegar a Copacabana, embarcaram
em um ônibus da linha 455 (Méier/Copacabana) na Cinelândia”. Após uma
passageira ter se sentido mal, por motivo ignorado pela matéria, “os PMs usaram
spray de pimenta e detiveram quatro pessoas alegando desacato.” Parágrafos
depois, relata-se – com a notória naturalidade que um órgão de imprensa como O Globo noticia os descalabros da nossa “democracia”
e suas “revoluções” – que “o ato foi dispersado [a voz passiva aqui não é por
acaso] por volta de 20h, quando o coletivo da linha 455 foi liberado.” Uma
informação importante: Copacabana, destino do referido coletivo retido pela
polícia até o ato “ser dispersado”, é onde foi montado o circo da Fifa Fan Fest.
PMs
aguardam os manifestantes para executar o cerco a mais um protesto contra a
Copa do Mundo, no centro do Rio, no dia 17/06/2014. Foto: Pablo Jacob/ Agência O Globo.
Se o leitor do jornal não tiver a sorte
de conhecer um manifestante, policial ou testemunha do ocorrido, ficará sem
saber dos “detalhes” envolvendo os estudantes com latas, os cerca de 30
passageiros do ônibus presos até as 20h, o motivo da tal passageira ter passado
mal e os 15 manifestantes detidos. Por sorte minha, eu conheço uma das
manifestantes que tentou participar do ato, uma moradora da favela da Babilônia
e ativista dos direitos humanos, a qual, perplexa diante da inovação tática da
PM, publicou na sua rede social o seguinte relato:
“Quando
cheguei na Candelária achei que tinha caído ‘sem querer’ em algum ato da PM.
Mas não, era o efetivo de hoje mesmo. E arrisco dizer que esse dado não
contabilizou os que estavam a cada esquina da Rio Branco. Obviamente que não
teve o ato e quando as pessoas tentaram ir embora, eles também não deixavam,
começaram a fazer revistas e levaram os primeiros detidos. Nem andar na rua foi
permitido, apenas pela calçada. Metrôs fechados! Combinamos sairmos todos
juntos, de ônibus. Caminhamos até a Cinelândia. As pessoas entravam
pacificamente pela porta da frente, pagando passagem. Então o PM googleglass foi até o motorista e pediu para ele
abrir a porta de trás, para liberar rápido a rua. Após as pessoas entrarem,
acreditando que iam para Copacabana, robocopscomeçaram a entrar também e o googleglass voltou até o motorista e falou ‘Sinto
muito, você deu azar, não vai poder sair com o ônibus.’ Tentaram prender as
pessoas em flagrante por não pagar passagem! Começou uma confusão, pessoas que
não estavam no protesto e estavam no ônibus começaram a querer sair e pulavam a
roleta para não irem para a delegacia. Foi o caos! Na confusão do entra e sai,
manifestantes entraram em conflito com policiais tentando impedir que levassem
os que restavam dentro do ônibus presos. O comandante Cegala, o mesmo tosco que
fez a desocupação da ocupação da defensoria e que esbarro toda hora, mandou o
ônibus seguir para a delegacia com a gente dentro, acompanhados por policiais,
mas parou poucos metros a frente e mandou a gente descer. Incrível! Tentaram
forjar um flagrante em massa. Essa polícia é uma vergonha! Acho que hoje foi um
sinal que vão começar a desconstruir os atos pela concentração.”
Sim, companheira. Foi, de fato, um
sinal. Um sinal de que o estado de exceção decretado sem muito alarde para
pacificar a Copa do Mundo um ano após os maiores protestos de rua da história
recente do país irá, como você diz, “começar a desconstruir os atos pela
concentração”, ou no decorrer deles, ou no momento arbitral em que as ordens
superiores dos dirigentes da nossa “democracia” chegarem à soldadesca. É um
sinal de que o essencial de Junho já foi assimilado pelo Estado brasileiro: uma
minoria organizada pode criar uma situação que fuja do controle tanto da
máquina repressora quanto da mesa de cooptação e fazer recuar vinte centavos, e
depois mais vinte, até sabe-se lá onde… Por via das dúvidas, a fé pública das
nossas instituições militares estará aí para dar uma força e garantir que não
haverá protesto, mediante o emprego de todos os meios necessários e
disponíveis. Pode isso, Arnaldo? Será esse o maior legado da Copa à
“democracia” brasileira?
***
Confira o dossiê especial sobre
a Copa e legado dos megaeventos, no Blog da Boitempo, com artigos de Christian Dunker,
Flávio Aguiar, Paulo Arantes, Antonio Lassance, Mouzar Benedito, Mike Davis,
Mauro Iasi, Edson Teles, Jorge Luiz Souto Maior, entre outros!
***
Eduardo
Tomazine, 31
anos, é professor substituto de Geografia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e doutorando pela mesma universidade. Orientado por uma matriz
político-filosófica autonomista, tem procurado compreender o papel dos
ativismos na transformação social, bem como “mapear” os seus obstáculos, em
especial no que diz respeito à produção do espaço urbano. Colabora com o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê /megaeventos.
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