Friday, August 14, 2015

O dogma da austeridade

O dogma da austeridade

"O que diferencia famílias de governos é a soberania — exatamente o que vinha sendo negado, por exemplo, à Grécia. Mas há ainda outras distinções. Lares são finitos. Nações, sendo um construto histórico e jurídico-político, são maiores que a soma das partes que a compõem", escreve Antonio Engelke, sociólogo, em artigo publicado pelo jornal O Globo, 12-08-2015.
Eis o artigo.
Disputas políticas começam no terreno da linguagem, isto é, na maneira de descrever os eventos, na escolha dos termos que compõem os debates, na delimitação das fronteiras do que conta como aceitável. Exemplo importante atualmente é o da analogia entre o equilíbrio de contas do Estado e as finanças caseiras. Se uma família gasta mais do que arrecada, terá que pedir empréstimos, contrair dívidas ou vender bens. Esta é uma verdade óbvia, que assinala uma situação insustentável. E é justamente por ser uma verdade óbvia que a analogia parece fazer sentido: como poderia um Estado manter-se saudável, cumprir satisfatoriamente com suas obrigações, se seus gastos superam as receitas? A conta não fecha.
Analogias são comparações que nos levam a entender uma coisa nos termos de outra. A questão é saber se a comparação tem algo de verdadeiro a nos ensinar. Nesse sentido, as muitas diferenças entre economia doméstica e estatal impedem um paralelismo tão simplório. O que diferencia famílias de governos é a soberania — exatamente o que vinha sendo negado, por exemplo, à Grécia.
Mas há ainda outras distinções. Lares são finitos. Nações, sendo um construto histórico e jurídico-político, são maiores que a soma das partes que a compõem. Se endividadas, famílias possuem margem de manobra bastante limitada, são praticamente obrigadas a cortar gastos. Estados podem aumentar impostos, imprimir moeda, estimular a demanda interna, rolar sua dívida a prazos mais elásticos.
Na economia doméstica, o corte de gastos não altera a receita da família. Quando o governo reduz o investimento público, a receita proveniente de impostos cai. E, ao contrário de estados, finanças caseiras não têm responsabilidade para com demanda agregada, inflação, políticas industriais, crescimento do PIB ou taxas de juros.
É evidente que um estado desnecessariamente inchado e perdulário não é desejável, e que a Lei de Responsabilidade Fiscal, instituída no governo FH, foi um avanço. Isso está fora de discussão. A questão é que a analogia da economia doméstica reduz nossa compreensão acerca das formas de atuação do Estado, ao invés de aumentá-la. Faz crer que o único modo de lidar com crises econômicas é o corte radical de gastos governamentais. A outra opção — o investimento público no sentido de fortalecer a demanda interna, aumentar o consumo a fim de reverter a roda da recessão, o que aliás pode ser feito em conjunto com certos ajustes — fica parecendo algo irracional, irresponsável, que sequer deveria ser debatido. No entanto, tal alternativa é perfeitamente razoável e lógica dentro da ciência econômica; de fato, é a solução defendida por importantes economistas liberais (no sentido americano do termo), como Paul Krugman e Joseph Stiglitz.
Tornada senso comum, a analogia da economia doméstica contribui para blindar a discussão sobre a crise de qualquer argumento que não contemple políticas de austeridade. Nada é mais prejudicial ao debate público do que seu fechamento em uma única posição, percebida como uma verdade cujo mero questionamento constituiria uma impropriedade típica de radicais. “Todo silenciamento de discussão”, dizia John Stuart Mill, “é uma pretensão de infalibilidade”. Mill tinha em mente o fato de que argumentos devem estar constantemente sujeitos à crítica, ao dissenso, do contrário terminam por ser “sustentados como um dogma morto e não como uma verdade viva”.
Desqualificar de antemão argumentos contrários à austeridade, apenas por não se coadunarem com uma falácia retórica que impede o reconhecimento da complexidade do papel do Estado na economia, é empobrecer o debate justamente quando seu aprimoramento é mais necessário.

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