O Estado de São Paulo, 3/12/2017
Suicídio
de reitor põe PF sob suspeita
Ministério da Justiça manda apurar
atuação de delegada que pediu prisão de professor da UFSC em operação de
desvios de recursos
03 Dezembro 2017 | 05h00
Alguém devia ter
caluniado Luiz Carlos Cancellier de Olivo, porque foi preso uma manhã, sem que
houvesse feito alguma coisa de mal. O início de O Processo é
lembrado pelo desembargador Lédio Andrade, do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina, ao comentar, ainda cheio de dor, o suicídio do reitor da Universidade
Federal da Santa Catarina (UFSC), que completou dois meses neste sábado, 2.
“Nem Kafka pensou que uma sucessão de arbitrariedades pudesse levar a algo tão
brutal”, disse Andrade, também professor da UFSC.
Cancellier, o
Cau, seu amigo desde os 9 anos, foi preso pela Polícia Federal, na chamada
Operação Ouvidos Moucos, na manhã de 14 de setembro. Estava sendo investigado,
sem saber, pela delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da Operação Lava
Jato, em Curitiba, e depois, da Ouvidos Moucos, em Florianópolis.
A suspeita sobre
o reitor de 59 anos, de nenhum antecedente criminal, era a suposta tentativa de
obstruir uma investigação sobre desvios no programa de educação a distância –
feita, principalmente, por um declarado desafeto do reitor, o corregedor-geral
da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, integrante da Advocacia-Geral da União em
Santa Catarina. No depoimento que prestou no inquérito da PF, o próprio Prado
contou sua contrariedade por Cancellier, em medida administrativa de redução de
custos, ter cortado uma gratificação de R$ 1 mil. A delegada nem sequer cogitou que poderia haver
possibilidade de retaliação pessoal. Prado não atendeu ao celular indicado como
dele pela UFSC.
No mesmo dia 14
de setembro, depois de depor na PF, o reitor, sem que até agora ninguém tenha
explicado o motivo, foi levado, como se condenado, para a penitenciária de
Florianópolis. Teve os pés acorrentados, as mãos algemadas, foi submetido, nu,
à revista íntima, vestiu o uniforme de presidiário e ficou em uma cela na ala
de segurança máxima. Cardiopata, passou mal, e foi examinado e medicado por seu
cardiologista. Trinta horas depois, a pedido do advogado Hélio Rubens Brasil,
uma juíza federal relaxou a prisão.
Dezoito dias depois, 2 de outubro,
Cancellier se matou, com 59 anos, atirando-se do sétimo andar de um shopping de
Florianópolis. “A minha morte foi decretada quando fui banido da
universidade!!!”, escreveu Cancellier em um bilhete que deixou. Cinco dias antes da tragédia, o próprio reitor descreveu,
em O Globo, a revolta que o dominava: “A humilhação e o vexame a que fomos
submetidos há uma semana – eu e outros colegas da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) – não tem precedentes na história da instituição”,
escreveu.
Andrade, que
lembrou Kafka, o viu pela última vez, em 13 de agosto – bem antes da prisão,
portanto – quando ambos, amantes do xadrez, foram a Blumenau, no interior de
Santa Catarina, participar de um partida simultânea contra a campeã brasileira
juvenil Gabriella Feller. O evento arrecadou uns trocados para Gabriella poder
participar do campeonato mundial que em breve se realizaria no Uruguai. Dos
doze adversários, a enxadrista derrotou onze, até mesmo o reitor. O único a
vencer foi Andrade. “Ele ainda me criticou por isso”, contou. Depois da prisão,
recebeu-o em casa, para um jantar de levantamento de ânimo entre poucos amigos.
Cau estava sob efeito de remédios psiquiátricos. O pouco que falou foi para
narrar o que passou na penitenciária. “Ele foi vítima de um sistema que condena
sem defesa, clamorosamente contrário à Constituição”, disse o desembargador do
TJ-SC.
Notícia-crime. Catarinense de Tubarão, filho de operário e costureira,
Cancellier foi liderança do movimento estudantil contra a ditadura, ligado ao
chamado Partidão, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois foi jornalista.
Assessorou o senador Nelson Wedekin, em Brasília, durante a Constituinte de
1987/1988. Nos anos 1990, de volta a Florianópolis, concluiu o curso de Direito
e seguiu a carreira acadêmica.
Deixou três
parentes diretos: o matemático Acioli Antônio, irmão mais velho; o jornalista
Júlio César, irmão mais novo, e o filho Mikhail, doutor em Direito, como o pai,
e também professor da UFSC. Em 31 de outubro, Acioli Antônio e o advogado Hélio
Rubens Brasil estiveram com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Torquato
Jardim, a quem entregaram uma petição de seis páginas pedindo a instauração de
“procedimento administrativo para apurar a responsabilidade da delegada Érika
Mialik Marena pelos abusos e excessos cometidos na denominada Operação Ouvidos
Moucos”.
A assessoria de
imprensa do ministério informou ao Estado que a petição foi
processada e tramita na forma de processo administrativo, atualmente na Polícia
Federal. Na PF, segundo o Ministério da Justiça, a corregedoria abriu
procedimento para verificar a notícia-crime descrita na petição da família. O
procedimento está sendo analisado pelo Núcleo de Polícia Judiciária. Ao fim da
análise, que está em fase de execução, haverá um parecer sobre a existência do
crime. A depender do que diga o parecer, abre-se um inquérito sobre a
delegada.
Prisão. A prisão temporária do reitor e de seus colegas da UFSC
foi pedida pela delegada Érika à juíza federal Juliana Cassol. Ouvido o
Ministério Público Federal (MPF) – onde o procurador da República André Bertuol
deu parecer favorável – Juliana autorizou, concordando com o argumento de risco
à investigação, entre outros. A prisão foi relaxada pela juíza federal Marjorie
Freiberguer, em momento que Juliana estava de licença médica. Quando retornou,
ela criticou o relaxamento. O Estado tentou falar com a
delegada Érika, com as duas juízas e com o procurador Bertuol. Nenhum quis
falar.
“Queremos
urgência na apuração das responsabilidades de todos os responsáveis pela prisão
que resultou na morte do Cau, incluindo a decisiva pressão do algoz (o
corregedor Hickel do Prado)”, diz o outro irmão, Júlio Cesar Olivo. Prado é
citado no documento entregue ao ministro da Justiça como “um subordinado e
oposicionista político”. Na semana imediatamente anterior à prisão, Cancellier
esteve em Portugal, participando de um seminário. Ao voltar, em 13 de setembro,
autorizou seu chefe de gabinete, Aureo Moraes, a abrir um processo
administrativo-disciplinar contra o corregedor, pedido pelo professor Gerson
Rizzatti. Prado ainda tentou uma liminar contra a portaria que abria o
processo, e o afastava até a conclusão, mas o juiz federal Osny Cardoso Filho
não a concedeu. Cancellier foi preso no dia seguinte.
No dia 23 de outubro, a vice-reitora
Alacoque Erdmann, que o sucedeu, recebeu a visita do superintendente regional
da CGU, Orlando Vieira de Castro, e do procurador da República André Bertuol.
“Eles pressionaram a reitora, e ela revogou a portaria”, disse Moraes ao Estado.
Dias depois a vice-reitora pediu para afastar-se do cargo – e
Prado pediu licença médica. Castro, Bertuol e a vice-reitora não quiseram
falar. Depois da morte do reitor, o site Jornalistas Livres levantou
uma série de procedimentos judiciais contra Prado, incluindo uma sentença por
calúnia, violências contra sua ex-mulher e contra moradores de um prédio em que
era o síndico.
Novo
reitor. Assumiu a reitoria da UFSC
o professor-doutor Ubaldo Cesar Baltazar, amigo antigo de Cancellier, e, como
ele, ex-diretor do Centro de Ciências Jurídicas. Baltazar despacha na mesma
cadeira onde há não muito atuava Cau. “Tive uma boa conversinha com ele antes
de sentar aqui”, disse ao Estado, revelando sua forte formação espírita.
“A prisão foi arbitrária e desnecessária”, disse o reitor. “Queremos a apuração
das responsabilidades.”
No comments:
Post a Comment