Tuesday, June 05, 2018

Na Alameda Lorena o esplendor do rentismo, por André Araújo

Na Alameda Lorena o esplendor do rentismo, por André Araújo

Na Alameda Lorena o esplendor do rentismo, por André Araújo
O tema é politica econômica, o pano de fundo é uma grande mercearia.
A Casa Santa Luzia é um ícone da sociedade rica de São Paulo, especialmente aquela dos Jardins. De início nos anos 20 um empório com raízes portuguesas é hoje a maior mercearia de luxo do Brasil pelo faturamento, estrutura e sofisticação de suas prateleiras. Seria o correspondente no Brasil da mercearia do Harrod´s de Londres, onde seus açougueiros parecem lordes, ou da casa Fauchon em Paris, ressalvadas a tradição muito maior desses estabelecimentos europeus, símbolos de refinamento na época de ouro do capitalismo.
Ocupando mais de meio quarteirão no coração dos Jardins, com 700 funcionários de um nível de atendimento superior, com pouca rotatividade, os funcionários tem décadas de experiência em cada setor. Destaca-se o setor de bebidas com uma variedade incomparável, vinhos de 25 mil Reais nas prateleiras sem chamar a atenção, o setor de café com mais marcas do que qualquer supermercado, latarias de todo o mundo, pães de todos os tipos imagináveis, as frutas são as da maior qualidade disponível no mercado, embrulhadas em papel transparente, especiarias, confeitaria com bolos e doces de incontáveis tipos, rotisserie com apresentações elaboradas para um jantar de última hora, congelados de centenas de pratos  prontos preparados na cozinha do estabelecimento. Os preços são realmente altos, a variedade de frios e queijos nacionais e importados é incomparável, molhos e temperos de todos os cantos do planeta, de múltiplas marcas para cada tipo.
A casa não tem filiais ou franquias, é apenas um estabelecimento, inimitável, imutável. Acima da loja existem andares de escritórios e estoques, sua própria cozinha e setor de importação.
Até pouco tempo um dos donos, Seu Álvaro, se postava na entrada sempre bem vestido, de gravata, solene, olho de lince para qualquer coisa fora do padrão até com exagero, saudando os clientes mais antigos, ainda do tempo da caderneta, privilégio que alguns poucos mantém. O desfile de clientes antigos é impressionante, personagens que parecem saídos de uma peça de teatro, uma memoria de São Paulo da antiga aristocracia do café e da indústria.
A existência de um negócio de luxo desse porte só é possível porque a Santa Luzia está no coração do rentismo paulistano, seus clientes não conhecem crise econômica, nos dias de semana se vêem senhoras bem vestidas seguidas por seus motoristas, copeiros ou mordomos que puxam os carrinhos carregados, depois de paga a conta no caixa a loja manda entregar em casa, a firma tem funcionários para entrega em domicílio em uma ou duas horas, sem custo.
A propósito do quê esta crônica passadista?  Faço uma ligação com a atual política econômica.
Um oásis de prosperidade como a Santa Luzia se relaciona com a economia brasileira como um estudo sobre a distribuição de renda no País. A impressão que se observa é que estamos em um paraíso fiscal de luxo  tipo Saint Barthelemy, um bairro fino de Genebra, um condomínio em Beverly Hills, em Los Angeles ou no bairro chique Puerta de Hierro em Madrid e não em País com as carências sociais terríveis em crescente agravamento, porque estão aumentando, que afetam 180 milhões de brasileiros, salvam-se razoavelmente acomodados uns 30 milhões, para os quais é formulada a politica econômica do rentismo, qual seja ajuste fiscal com metas enlouquecidas de privatização a qualquer preço, cortes nas despesas sociais para os mais pobres, cortes de verbas em hospitais, escolas e segurança, pesquisas cientificas paralisadas, descapitalização do BNDES para aumentar o desemprego, obras interrompidas, mantidos os super salários e mordomias do último andar do funcionalismo, afinal eles também fazem parte de um outro grupo de rentismo, aqueles cujo depósito em conta vem do Tesouro e não de um fundo de investimentos e que tem férias garantidas para uma viagem anual volta ao mundo no melhor estilo. Esses mundos rentistas convivem muito bem no Santa Luzia.
No Brasil, como em qualquer lugar, sempre houve classes sociais bem diferenciadas, MAS para quem já viveu muito como eu, escapa à memoria uma fase de tal EXARCEBAÇÃO das diferenças sociais. Países que se tornam ILHAS DE BEM ESTAR cercados por oceanos de miséria como é um Pais com 27 milhões de desempregados, subempregados e desalentados, cada um afetando a vida de 4 ou 5 filhos, esposa, pais e irmãos, um desempregado na família aflige outros que dele dependem ou com ele convivem, todos são afetados de um modo ou outro, nas classes mais humildes a solidariedade é muito maior do que nas classes altas.
Situações desse tipo em grandes países NÃO TERMINAM BEM. Mas a politica econômica atual e a que alguns candidatos pregam seria uma continuidade da “opção neoliberal” com mais ajuste, mais privatizações e mais domínio do total da politica econômica pelo mercado financeiro, já que despontam como gurus econômicos alguns de seus cardeais, como Paulo Guedes (Bolsonaro), Pérsio Arida (Alckmin), João Amoêdo e Flavio Rocha são os gurus de si próprios, nem precisam de conselheiros porque são neoliberais de berço e raiz.
Ora, o NEOLIBERALISMO É COISA DO PASSADO, está caindo fora de moda por todo o planeta após a crise de 2008, não avisaram os gurus brasileiros, que estudaram no exterior no apogeu neoliberal dos anos 80 e 90. As últimas eleições europeias, o BREXIT, a eleição de um populista como Trump nos EUA, o avanço geopolítico da China, a volta do PSOE na Espanha, os discursos das novas forças politicas na Europa apontam para reestatizações e maior controle do Estado sobre a economia, porque lá também renasce a pressão social de baixo. Há um claro abandono do neoliberalismo PORQUE ele não trouxe solução alguma, ao contrário agravou, problemas como o desemprego, o aumento da criminalidade, os desafios migratórios, a nova guerra comercial desencadeada pelos EUA justificada pelo maus resultados da globalização sobre o emprego e a vida das pessoas e que está apenas começando, são todos efeitos negativos do neoliberalismo antes visto como o “fim da História” ou solução para todos os problemas econômicos e sociais, como alguns ingênuos pensavam, viu-se que a História é muito mais complexa do que modelos econômicos de acadêmicos de Chicago, a roda da História gira incessante por acima e muito além da economia e das ideologias, meras construções intelectuais falíveis sob o teste da realidade, muito mais complexa do que formulações de teses de mestrado em Boston.
O neoliberalismo na sua gênese de Mrs.Thatcher e Ronald Reagan foi pensado para ECONOMIAS MADURAS, da Europa e Estados Unidos e hoje essas estão revisando a lógica dessa ideologia porque ela se tornou uma promessa falsa e produtora de novas crises.
Mas para os PAÍSES POBRES O NEOLIBERALISMO JAMAIS FOI UMA SOLUÇÃO. Países pobres ou emergentes precisam do poder público e liderança politica para acelerar etapas de inclusão social e desenvolvimento econômico, conceito que é maior do que apenas crescimento do PIB.
Ao contrário, onde foi aplicado o neoliberalismo como base da política econômica o resultado foi aumento exponencial da desigualdade social, baixo crescimento e agravamento das tensões politicas e sociais, caso do Brasil, da Espanha, do México. Os discursos no Parlamento Espanhol que levaram à queda do Governo Rajoy, ouvi todos, sintetizaram exatamente esse quadro desastroso que o neoliberalismo produziu na Espanha, esse foi o tom do discurso de Pedro Sanchez, do PSOE, a falência da politica econômica neoliberal em vinte anos de governo de direita, a pequena corrupção do PP foi apenas o gatilho, a razão está na economia e no social dela decorrente, especialmente, como no Brasil, do imenso desemprego dos jovens.
Voltando mais atrás na historia econômica do Brasil está na minha memória o grande envolvimento das lideranças politicas desde 1930 com a preocupação da melhoria social dos pobres na economia, foi a grande preocupação de Vargas, mas também a de Juscelino, também os governos militares tiveram grande foco no social, com históricos programas como o MOBRAL, o BNH, o FGTS, a centralização dos institutos de previdência e as bases do SUS, consolidado na Constituição de 88, havia a preocupação com o fosso entre a classe de maior renda e os muito pobres. Os líderes empresariais da indústria, como Roberto Simonsen e muitos de seus sucessores na FIESP, na CNI, tinham também uma forte preocupação social, havia essa CONSCIÊNCIA em ajudar a classe mais carente a melhorar de vida. Participei por 40 anos de sindicatos patronais e associações empresariais e sou testemunha dessa preocupação que se refletia em muitas ações de lideres do empresariado.
Quando na gestão Luis Eulálio Vidigal na FIESP, fim dos anos 70, ele e seu grupo apoiaram no seu inicio a trajetória de Lula, a ideia era apoiar a classe trabalhadora numa inclusão politica maior para corrigir injustiças do passado, havia um genuíno interesse no bem estar do trabalhador. Os lideres empresariais, até por necessidade, conviviam com os operários.
Sempre houve muitos pobres nesta grande nação, mas a partir de 1930 os pobres começaram a prosperar, havia uma clara melhoria entre gerações, o filho do lavrador analfabeto subia na vida, os POBRES TINHAM ESPERANÇA, a industrialização de São Paulo e a construção de Brasília, símbolos de degraus para migrantes de regiões miseráveis que tinham o sonho de algum progresso foram etapas REAIS de inclusão social. Exemplos vivos no meu entorno, foram dezenas, empregados domésticos que formaram filhos engenheiros, na fábrica muitos que vieram do Nordeste elevaram substancialmente o nível social dos filhos, algo que era relativamente comum nas décadas de 50, 60, 70, 80. Hoje é muito mais raro e difícil, temos 20 milhões de jovens entre 14 e 29 anos na geração NEMNEM, nem estudam e nem trabalham e obviamente não tem nenhum futuro, sem que haja real preocupação com isso na elite neoliberal, satisfeita com a inflação na meta que protege seu capital investido em fundos.
A implantação da POLÍTICA NEOLIBERAL no governo FHC continuou com outra embalagem nos governos do PT, porque a politica monetária se manteve sob o comando do Banco Central no mesmo grupo de “economistas de mercado”, mas o PT atendeu sua base eleitoral entre os mais pobres com razoáveis programas de assistência para horror dos neoliberais ideológicos que, no poder, tudo fazem para desmontar esses programas. Sua simples  existência os incomoda como desperdício de recursos, esquecendo que Milton Friedman, um de seus gurus pelo lado do monetarismo, propunha um tipo de bolsa família para os mais pobres. Friedman, ao contrario de seus seguidores, tinha preocupações sociais declaradas em seus livros.
Ao mesmo tempo se criou uma nova aristocracia do financismo, os RENTISTAS, que não existia como classe até 1990. Existiam sim os INDUSTRIAIS que estavam em permanente contato com a classe operária, não eram DESLIGADOS da realidade brasileira. Foram os industriais e comerciantes que criaram o SESI e o SENAI, o SESC e o SENAC, o que demonstra uma preocupação, alguns podem dizer que era um falso populismo empresarial, mas havia sim uma preocupação com a classe trabalhadora porque os industriais viviam junto ou próximos de seus empregados, era impossível não captar seus problemas e carências.
Já os RENTISTAS não têm preocupação alguma com os pobres do entorno, estão muito distantes deles, só os vêem pelas janelas dos carros, pouco se lhes dá como vivem, no máximo tratam bem e nem sempre seus empregados domésticos.
A preocupação dos RENTISTAS é com as viagens ao exterior, com a casa em Miami, com o filho que estuda na Califórnia, eles estão DESLIGADOS do Brasil. As escolas bilingues são a nova moda, escolas para crianças que já alfabetizam em inglês, caríssimas, dentro nada lembra o Brasil. Outra moda é mães do rentismo terem seus filhos nos EUA porque assim já nascem com passaporte americano. Essa é a “nova classe” completamente desligada do Brasil MAS QUE TIRAM SUA RENDA DO BRASIL. Não é fácil ganhar a vida nem ser rentista nos EUA.
Os rentistas dos dois tipos são absolutamente favoráveis à desnacionalização das empresas brasileiras e à privatização das estatais, uma Petrobras controlada pela Chevron significa empregos para seus filhos bilingues e a partir dessa plataforma poderão ser transferidos para trabalhar na matriz nos EUA, máxima glória, orgulho dos pais, os netos serão americanos.
Essa nova construção social de hoje está no pano de fundo do mapa politico brasileiro.
Nenhum País sobrevive por muito tempo com esse contexto. Está ai o exemplo da África do Sul, lá havia o “apartheid” racial, nos temos o nosso social e econômico. Lá o modelo social de 400 anos IMPLODIU porque era insustentável, Mandela foi produto dessa dinâmica e não causa, a África do Sul teve que redesenhar seu sistema político porque o antigo não dava conta.
Historicamente o desemprego, subemprego ou desocupação de 25% da população é insustentável por muito tempo, já estamos na borda de um vulcão que o neoliberalismo tabajara cego, mudo e surdo e especialmente medíocre não vai resolver, além de estar com a ideologia errada neste tempo de grandes rearranjos sociais e geopolíticos no planeta.
Aqui o novo “apartheid”, novo porque a elite do financismo não está nem ai com a vida dos pobres, esse tecido social não vai se manter imóvel por muito tempo, essa dinâmica desagua na politica, assim foi por toda a História, tensões sociais acumuladas, às vezes por séculos, de repente estouram por um fato menor, poder ser o pão da Rainha Maria Antonieta ou o diesel do Parente, mas tal qual o vapor numa caldeira, há um ponto onde a pressão acumulada não mais se contém  e uma ruptura é inevitável, já estamos na sua proximidade.
A PARALISAÇÃO DOS CAMINHONEIROS foi um claro extravasamento de um tumor dessa crise porque nenhum movimento desse porte se materializa sem o impulso provocado pela adesão voluntária de cada indivíduo a partir de sua realidade sentida que nenhuma manipulação inventa ou consegue criar a partir do discurso, o detonador foi a realidade de cada um.
Me perdoe a Casa Santa Luzia, por onde dou uma passada todos os dias há 40 anos, moro perto, compro alguma coisa e tomo seu excelente café com degustação de bolinhos,  por tê-la usado como moldura deste texto, nada tenho contra esses dignos comerciantes, tão tradicionais que construíram seu negócio com trabalho e dedicação, dando emprego a centenas de trabalhadores, eles são a resultante e não a causa do tema.

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