Tuesday, June 26, 2007

Sartre e a Tropa de Choque: O Silêncio dos Inocentes

Segue abaixo uma reflexão escrita pelo antigo aluno da Unesp
Ronan Gomes Gonçalves, recebi por e-mail do professor Luís Antonio Groppo:

Sartre e a Tropa de Choque: O Silêncio dos Inocentes
Ronan Gomes Gonçalves

A Unesp de Araraquara entrou para a história. Há bons anos atrás o campus caipira promoveu evento acadêmico com notáveis dentre o público e com outro grande notável, - intelectual e esquerdista-, que entrou para a história da filosofia mundial: Sartre. Aquele grande evento que reuniu a nata da intelectualidade nacional contrasta com o tom cinzento dos professores de hoje e com o outro grande fato histórico: a expulsão dos alunos ocupantes da diretoria da unidade, por intermédio de uma ação efetuada pela tropa de choque, no meio da madrugada. Tempos atrás, a Unesp de Araraquara atraía ônibus de intelectuais e um grande nome do século XX. Hoje, a Unesp de Araraquara atrai ônibus de policiais militares, para depois lotá-los com alunos, numa belíssima excursão rumo à delegacia. Será que de tanto pesquisar as condições sociais em seu redor as chefias acadêmicas da Unesp de Araraquara decidiram copiar os métodos de gestão levados a cabo pelos latifundiários e usineiros da região?
Mas nem só de Sartre, Antônio Cândido e Fernando Henrique Cardoso, assim como, nem só de tropa de choque vive a Unesp de Araraquara. Nos últimos tempos temos visto ser criada uma corrente de opinião e uma prática gestorial de criminalização das lutas estudantis dentro de toda a Unesp. Se a Unesp de Araraquara se destacou ao trazer ao seu recinto um intelectual do porte de Sartre, não é pioneira com relação à tropa de choque. Desde a gestão do antigo reitor Trindade que a tropa de choque foi incluída como elemento do diálogo com as lutas estudantis. Foi tal reitor que se preocupou em transferir as reuniões do Conselho Universitário para cidades mais afastadas, procurando, assim, evitar que lá chegassem os estudantes e, ainda, incluiu a tropa de choque nas portarias dos prédios onde se realizavam tais reuniões.
O que é curioso, realmente curioso, é o fato de a vinda de Sartre ter se tornado objeto de pesquisa, enquanto a prática de inclusão da tropa de choque no diálogo com as lutas estudantis nunca ser objeto de estudo. Para Sartre, eventos comemorativos, dissertações, teses, publicações. Para as lutas estudantis, não há um único grupo de pesquisa em toda a universidade, desconhecem-se dissertações e teses, publicações, etc. A prática de repressão e criminalização das lutas estudantis dentro da Unesp tem sido corroborada com o silêncio dos inocentes. Das várias entidades estudantis, dos vários grupos de pesquisa, dos milhares de pesquisadores, não há um único eco das botas e cassetetes, dos gritos e palavras de ordem, do trabalho de formiga efetuado pelos que resolveram não abaixar a cabeça e reivindicar coisas tão simples e necessárias como moradia, almoço, transporte, livros. A memória das lutas estudantis e dos problemas que ela encerra é levada acabo pela própria luta. Daí que tais lutas possuam, além de um incomensurável valor pedagógico, a capacidade de preservar minimamente uma memória coletiva.
A falta dessa memória incapacita pessoas alheias às lutas estudantis de se aperceberem de fatos nunca mencionados nos sites e jornais. A repressão na Unesp tem atingido os vários campi que sempre se destacaram como locais de luta e resistência. O ostracismo a que a grande mídia condena as lutas estudantis na Unesp impossibilitou à opinião pública ter conhecimento de que essa universidade, a menos elitizada das estatais do Estado de São Paulo, foi palco das mais profícuas lutas que ocorreram nas universidades paulistas nos últimos dez anos. Quem souber, por exemplo, que a moradia estudantil da Unesp de Marília foi fruto de uma ocupação de 4 anos, na qual alunos moraram por esse período em sala de aula – resistência para Mandela nenhum botar defeito-, talvez se assuste de sua própria ignorância dos fatos.
Os campi da Unesp de Araraquara, Marília, Franca, Assis, Presidente Prudente, Bauru, São Paulo, sempre se destacaram enquanto locais de lutas estudantis. São justamente os campi que alojam os cursos de humanidades e licenciaturas, para os quais acorre uma parcela mais precarizada de alunos, muitos deles beneficiados com as isenções de vestibular distribuída pelo Estado e, portanto, necessitados da política de inclusão universitária, consubstanciada nas bolsas para alunos carentes, moradias, subsídios em restaurantes universitários, transporte, etc. Foram esses estudantes que ao longo dos anos, tal qual no exemplo da moradia de Marília, obrigaram as chefias egoístas da universidade a criarem políticas de inclusão universitária, possibilitando, minimamente, que os alunos carentes sócio-econômicamente pudessem realizar seus cursos e não abandoná-los, como gostaria uma parcela ressentida. A Unesp de Araraquara se inseria num amplo espectro de mobilização e lutas estudantis.
Para a realização dessa mobilização vários fatores contribuíam. Um, muito importante, era o acesso aberto que os alunos tinham com relação à infra-estrutura da universidade. Na gestão do antigo reitor Antônio Manoel, 1999 em diante, desbravou-se movimentos de ocupação por moradias estudantis em vários campi: Araraquara, Marília, Assis, Rio Preto, Bauru, São Paulo, Presidente Prudente. Essas ocupações eram reforçadas com encontros de moradia, também encontros mensais dos estudantes, os chamados Encontros de Entidades Estudantis da Unesp. Ainda, havia muitas viagens para protestos na capital paulista, local onde se encontra a reitoria. Todas essas viagens eram facilitadas pelo fato de os alunos poderem utilizar os ônibus de cada unidade. As ocupações de reitoria eram feitas utilizando os ônibus das faculdades para irem até São Paulo. Os alunos se alimentavam (lanche de mortadela, queijo – o X-luta) com a ajuda de custo que eles conseguiam das direções para as viagens, idem dos sindicatos, alguns professores. Os alunos conseguiam obrigar as chefias das distintas faculdades a fornecerem os meios materiais para eles fazerem a sua luta. Assim como elas fornecem a estrutura para as empresas hoje, para os gestores do poder público, etc.
Não só os ônibus eram utilizados livremente pelos estudantes, mas também as salas e os espaços, para alojarem os congressos, as reuniões, as festas que arrecadavam fundos, os eventos de discussão política e discussão pública, as salas de vídeo, os laboratórios de fotografia. Com auxílio das chefias, os alunos faziam jornais, fanzines, eventos culturais, de poesia, musica, etc. Os alunos da Unesp, por comparação com os da USP e Unicamp, têm a distância entre os campi a vencer se quiserem se mobilizar de forma mais coletiva, e para isso a utilização da infra-estrutura da universidade era essencial, tudo o que contribua para ampliar os laços entre os estudantes é bem vindo. Lugar para os alunos de outros campi dormirem, meios de transporte, etc. Naqueles anos, os alunos não necessitavam de autorização de professor para solicitar a utilização de ônibus, salas, vídeos, câmeras, e nem eram obrigados a ter um professor acompanhando as viagens. As festas não eram proibidas e a maior abertura dos campi possibilitava um trânsito mais livre de estudantes entre as várias unidades. A própria Unesp de Araraquara alojou um encontro geral de estudantes em 1999 que não seria permitido hoje.
Num tempo em que o PT não estava ainda no poder, a UNE não era um departamento governista como hoje e os alunos, vez por outra, podiam contar com alguma ajuda material numa excursão de protesto que servia para eles irem estreitando os seus laços, fazendo suas lutas. A UNE hoje é uma subsecretaria do Ministério da Educação e junto com a UEE recebe somas vultosas do governo e anda angariando patrocínio de parceiros de luta como o Santander. Aliás, esse mesmo Santander andou patrocinando evento anticapitalista, onde se discutiria teoria crítica, na Unesp de Marília.
A limitação de acesso estudantil às infra-estruturas da universidade, que não foi combatida por nenhum professor - em sua ânsia egoísta de controlar tudo -, foi um dos aspectos contribuintes para o desmoronamento de um forte movimento estudantil. A proibição de realizar festas, encontros, eventos, o fim do patrocínio para as publicações estudantis, tudo isso foi fator importante para desalojar os estudantes de uma verve institucional mais ácida. A batida em retirada num sentido governista e/ou empresarial das entidades estudantis, a saída normal, dado a formatura, dos alunos mais empenhados nas lutas estudantis, a ausência de associações de ex-alunos, a vaidade que impede que os alunos existentes convoquem antigos alunos para falarem de suas experiências de luta, a inexistência de pesquisas sobre as lutas estudantis, projetos que preservem tal memória somaram-se a esses dados.Como os campi com maiores incidência de luta eram os campi de humanas, buscou-se, com a expansão de vagas a partir de 2003, introduzir cursos de exatas e biológicas, ou cursos mais caracterizadamente mercadológicos nesses mesmos campi. O aumento da heterogeneidade sócio-econômica e cultural, a falta de tradição de luta desses novos membros e a presença de uma clientela sem problemas econômicos foi fator decisivo para esmorecer os processos de luta.Essa expansão não seguiu apenas critérios pedagógicos.
A Unesp de Araraquara está numa linha fascista já faz uns dias. Foi lá que a Congregação baixou decisão proibindo manifestações de alunos, distribuição de cartazes, etc. O Diretor, para fazer o que fez, está muito bem respaldado num professorado elitista, egoísta e conservador. Professorado que há tempos vem buscando a guetificação das unidades universitárias, seu desligamento com os movimentos sociais, o acentuamento da hierarquização, o controle exclusivo sobre as estruturas. Estão, por sua vez, auxiliados por uma parcela de alunos conservadora e egoísta nos campi, que desejosos de servirem o mais rápido ao capital, servos voluntários, ressentem-se de qualquer de seus pares que pensem e façam diferente.
O mais problemático é perceber na Unesp o fim de uma cultura de união entre os alunos mais pobres. Uma imagem vem-me sempre à mente: a saída conjunta de todos os estudantes da moradia estudantil da Unesp de Marília para participarem de uma reunião com a então vice-diretora da unidade, em 1999, quando a direção pretendia expulsar um aluno da moradia. Não vou me estender em minúcias, basta citar que nesse dia - único na vida -, os estudantes chegaram a fazer a gestora chorar dado o teor do debate e do confronto verbal. No mesmo ano de 1999, dado a possibilidade de a tropa de choque ir desalojar os estudantes do campus de Rio Preto que estavam ocupados na luta por moradia, alguns alunos da Unesp de Marília juntaram suas moedas e foram a Rio Preto prestar solidariedade aos seus pares. Ou lembrar dos colchões e mantimentos, também da ajuda financeira, que o movimento de ocupação de 1999 em Marília recebia de vários alunos, funcionários e alguns professores.
Nos últimos anos as moradias estudantis têm perdido a cultura de identidade que possuíam, perdido também o orgulho de serem os alunos mais precarizados que contra tudo e contra todos conseguiram passar pelo filtro sócio-econômico que é o vestibular das universidades estatais. Nunca mais vi camisetas como aquela que dizia: Sou da Moradia, Sim Senhor e que, ao lado do desenho das casas existentes, tinha desenhado as futuras moradias, que a luta estudantil ia conseguir e conseguiu. Sumiram as festas com objetivo de sociabilididade e grassam as festas com objetivo de ganhos monetários, onde a classe média pode se distinguir por poder pagar os ingressos cobrados. Passa a contar a roupa de grife, a detenção de cursos de língua, praticas culturais elitistas como rapel, tênis. Os alunos pobres deixam-se envergonhar por serem pobres, abraçam a perspectiva dos mais bem nascidos, aceitam, como ocorreu numa festa da Relações Internacionais em Marília, que seguranças a serviço de tais alunos espanquem dois alunos pobres. Será que se fossem filhos de um promotor, um gerente de banco, os seguranças teriam agido tão tranqüilamente e os estudantes teriam dado a ordem tão facilmente?
A tropa de choque em Araraquara é apenas o aspecto de um amplo processo. Muitos poderão, tranqüilamente, refazer as suas consciências. O papel da tropa de choque é bater, o dos policiais reprimir. Mas para que a tropa de choque venha desfilar onde antes desfilou Sartre, muita coisa há de mudar. Como lembrou um professor da Unesp de Marília, a policia que hoje está voltada para os estudantes pode estar voltada, a futuro, contra os próprios professores. Quem duvida disso deve ler o memorial do Maurício Tragtenberg, ou Florestan Fernandes, no O Livro Negro da USP. Saber, por exemplo, que alguns professores da rede estatal fundamental e média foram exonerados depois da greve de 2000. Nesta hora seria interessante imaginar o que diria Sartre diante de tal fato. Por enquanto é rezar: volte Sartre, volte!

No comments:

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lóg...