Saturday, May 31, 2008

"para que poetas em tempo indigente?"

Arte em tempos de indigência?
Artigo da revista CULT.


Encontros sobre arte e filosofia, como os Seminários Internacionais de Vila Velha, no Espírito Santo, transformam-se em uma nova modalidade de resistência política

Por Eduardo Socha*



Seminários "para que poetas em tempo indigente?", em Vila Velha, março de 2008: participação expressiva do público e de
importantes figuras do meio acadêmico e artístico consolidam encontro na agenda dos principais eventos culturais do país.

Isolar uma frase de seu contexto e reproduzi-la como slogan para o fácil comércio no mercado das idéias: este talvez seja o procedimento mais eficaz para se corromper a obra de um filósofo. Adorno, cujo pensamento sempre recusou a falsa objetividade do saber positivista, também não escapou desse jugo de caráter publicitário. Arrancaram-lhe de um artigo de 1949, "Crítica da cultura e sociedade", uma frase que o tornaria conhecido e igualmente desdenhado pelo público que um dia já ouviu falar em seu nome. Adorno teria dito com todas as letras que "escrever um poema depois de Auschwitz é um ato de barbárie". A declaração foi (e ainda permanece) objeto de escárnio e ódio e se converteu numa espécie de adágio que acompanha qualquer referência ao filósofo. Adorno? Ah, o sujeito carrancudo que falou mal do jazz, criou a noção de indústria cultural e "proibiu" moralmente a poesia depois de Auschwitz. É claro que Adorno voltaria a encarar a questão, em 1966, três anos antes de sua morte, tentando desfazer o mal entendido. Começava então afirmando que é próprio da filosofia nunca se exprimir de maneira totalmente literal, na linguagem asséptica de alguma cartilha científica. Pois o efeito retórico de toda formulação filosófica pertenceria a seu próprio núcleo expressivo, não podendo ser tratado como simples ornamento. Quando tal efeito é anulado, reduzindo a declaração a seu valor de face, perde-se de vista o verdadeiro alcance de sua intenção. Mas qual o sentido, afinal, da "proibição" adorniana de 1949?

Para Adorno, o choque do pós-guerra, subitamente convertido em recalcamento social, exigia uma nova reflexão sobre o papel cultural da arte, para que não fosse ocultada a dialética inevitável entre cultura e barbárie, dialética que a experiência recente do nazismo havia demonstrado. Reprimir a lembrança do passado recente - esquecer rápido Auschwitz e forjar uma joie de vivre burguesa sustentada por uma arte parasitária - era assim a pior forma de realizar o acerto de contas social, necessário para tornar viável o resgate de uma certa noção de progresso. A frase de efeito do filósofo deveria ser entendida como a ponta retórica do iceberg proposto pela sua teoria, que identificou paralelos ideológicos entre a propaganda fascista e o mecanismo da indústria cultural, fenômenos marcados pela reversão da razão em mito. Na verdade, como o próprio filósofo diria em 1966, era mais do que urgente escrever poesia, mas aquela poesia atenta para a premissa hegeliana de que enquanto houver consciência do sofrimento, deve existir uma arte para dar forma objetiva a esta consciência. Ao dedicar mais da metade de sua produção intelectual à estética, Adorno sabia que as relações entre arte e política estão longe de ser inocentes e que não deveriam ser analisadas separadamente. Daí o motivo central para sua frase de efeito. Se, por um lado, é falsa a idéia de ver a arte e a cultura como simples epifenômenos sociais, como expressões singularizadas do espírito de época de uma comunidade, por outro, quem reduz o papel da arte apenas a um setor organizado de lazer, perde a chance de realizar o mapeamento da complexa rede que une política e cultura. A verdadeira análise das dinâmicas sociais estaria, para Adorno, na tensão dialética entre esses pólos.

Mesmo que não concordemos com as teorias de Adorno, o exemplo dado pela sua frase de efeito e pela sua polêmica nos autoriza a dizer que as relações arte e filosofia devem ser compreendidas sob a perspectiva mais ampla de um debate acerca da própria organização política de uma sociedade. Dito de outro modo, a produção de idéias envolvendo arte e filosofia é indispensável para a compreensão e para a definição dos destinos da política, no sentido forte do termo. Levando em conta a dispersão contemporânea dos valores estéticos e a progressiva institucionalização da barbárie, a urgência de reflexões dessa natureza torna-se cada vez mais evidente. Por outro lado, não é difícil perceber que a concretização dessa necessidade sempre esbarra em limitações graves, principalmente aquelas associadas à precariedade estrutural de um país periférico. Cabe então a pergunta: de que maneira é possível estabelecer, no Brasil, um espaço regular para discussões sobre arte e pensamento que consiga ir além dos muros universitários?

Superar o alarmismo
Iniciativas como os ciclos de conferência organizados há vinte anos por Adauto Novaes ainda são bastante raras. Mas uma resposta interessante vem sendo empreendida curiosamente em Vila Velha, no Espírito Santo. Há três anos, o Museu Vale realiza em suas instalações um importante fórum de seminários internacionais, aberto ao grande público, cuja temática focaliza as relações entre arte e pensamento no século 21. Fazendo parte da programação estável do museu (criado há dez anos com uma notável vocação pedagógica e comunitária) e integrando a agenda dos eventos culturais relevantes do país, o projeto dos seminários chama a atenção já de início: seja pela consolidação de um importante espaço de reflexão fora do eixo Rio-SP, seja pelo esgotamento de todas as vagas em poucas horas após a abertura das inscrições; motivos que por si só fornecem os indícios de uma demanda crescente por esse tipo de evento. A última edição, realizada em março deste ano, partiu de uma indagação corrosiva do poeta romântico alemão Friedrich Hölderlin, cujo desalento ressoa com brutal intensidade no contexto de hoje - "... e para que poetas em tempo indigente?" A pergunta encerra paradoxalmente uma elegia do poeta, na qual se coloca em dúvida o próprio direito de existir da arte; algo que Adorno, para ficarmos no exemplo da frase de efeito, nunca deixou de problematizar no plano histórico e conceitual.

Contudo, a proposta dos seminários de Vila Velha, reunindo filósofos, historiadores, psicanalistas e críticos consagrados, deseja em cada edição superar o alarmismo de uma catástrofe absoluta e inevitável da arte. Pois a indigência espiritual e material do nosso tempo, marcado pela crise geral de sentido, não deveria impedir o reconhecimento da experiência transgressora que o conteúdo de verdade da arte pode promover. Segundo o organizador do evento, Fernando Mendes Pessoa, é inegável que "a arte propicia um acontecimento fundamental capaz de transformar essa indigência", embora tal transformação não se converta em objeto localizável de acordo os parâmetros de uma lógica mercantil.

Assim, para dar conta do desafio de compreender aquilo que escapa à redução sócio-cultural da arte no mundo contemporâneo (quer dizer, para que a arte não seja o lugar pedante de "grã-finagem cultural"), a organização optou neste ano pela divisão dos seminários em dois momentos: "a indigência de nosso tempo" e "para que arte hoje?". Ou seja, não se quis apenas avaliar a perda do caráter formador das instituições artísticas (museus, academias de belas-artes, orquestras etc) na formação de subjetividades; confirmar a "era do vazio" após o esgotamento das possibilidades de renovação política e espiritual; constatar a instrumentalização tirânica e diária de quase todos os nossos desejos pela publicidade; ou, até mesmo, verificar de que modo uma certa "estética da miséria", que o olhar ocidental deseja impor sobre o Brasil, continua a orientar os critérios de justificação para a arte realizada no país.

A tônica da última edição dos seminários, na verdade, foi atualizar a questão sobre a legitimidade da arte, sobre seu próprio "direito de existir" em novos tempos de indigência. Assim, a partir de autores clássicos e contemporâneos, o encontro buscou neste ano debater a necessidade que todos possuímos daquele espanto contínuo e renovado que apenas a criação artística concede, necessidade que provém de um impulso vital. Desestabilizar percepções estruturadas, implodir a visão habitual das coisas: aí estaria o potencial subversivo e transformador da arte, cujo questionamento sempre perturba o consumo dócil das opiniões, a imposição do pensamento único, a adesão irrefletida ao pré-estabelecido. Como foi declarado nos seminários, a própria pergunta "para que arte?" torna-se falsa na medida em que não há definição universal e satisfatória de arte; ou seja, não há definição que dê suporte para a procura de um sentido, de um "para que" - é da própria natureza do novo não se conformar ao já existente. Nesse compromisso com o novo, nesse questionamento perpétuo sobre o instituído, arte e filosofia se encontram e podem ganhar contornos políticos. Afinal, se, apesar do progresso tecnológico e econômico, enfrentamos o risco de um novo estágio de indigência espiritual e de conseqüente avanço da barbárie impulsionado por um capitalismo suicida, os seminários lembram que temos a arte precisamente para não perecer nessa indigência. Com isso, comprovam mais uma vez que o próprio debate sobre arte e filosofia, sobre o campo fecundo de reflexões que tal confronto estabelece, é também uma forma discreta (porém decisiva) de resistência política.

* O autor viajou a convite da organização do evento "Seminários Internacionais Vale". Mais informações sobre o evento em www.seminariosmv.org.br


FONTE: http://revistacult.uol.com.br/website/site.asp?edtCode=EF641083-3D32-4F8C-9C5D-30564DAAF6B4&nwsCode=A50BBF25-FC80-4588-B95A-00766DCE954E

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