Tuesday, July 28, 2015

Brasil ignora apelos e se mantém fora de tratado sobre direito humanitário

Brasil ignora apelos e se mantém fora de tratado sobre direito humanitário

País é produtor das bombas de fragmentação, as chamadas munições cluster, que podem impactar por décadas locais atacados
Pouco mais de nove anos após seu início, em 12 de julho de 2006, a Guerra do Líbano ainda causa danos à população civil, principalmente àqueles que residem no sul do país. A região foi a mais atingida pelos bombardeios das forças israelenses no conflito que perdurou por trinta e quatro dias, entre julho e agosto daquele ano.
No período, 4 milhões de submunições lançadas por Israel atingiram o território libanês, segundo o Centro de Coordenação da Ação Anti-minas (MACC) das Nações Unidas no Líbano. Mas, estima-se, 1 milhão não foi detonada.
E o Brasil, apesar de não ter relação direta com conflito, pode ter responsabilidade sobre este legado indesejável, pois está no seleto grupo das dezesseis nações que ainda produzem munições cluster: bombas de fragmentação formadas por centenas de submunições que, quando lançadas ao ar por aviões ou mísseis, espalham-se por uma área que pode exceder 30 mil metros quadrados. Além de atingirem alvos indistintamente, parte desses explosivos falha e, não detonados, passam a ter efeito parecido com o de minas antipessoais.
Apesar de anos de esforços com apoio internacional para a limpeza de áreas atingidas em todo o mundo, do Líbano ao Laos, as submunições ainda não detonadas continuam deixando vítimas. Há pouco mais de três meses, no dia 27 de março deste ano, seis crianças que brincavam nos arredores de Zibqin, ao sul do Líbano, foram atingidas pela explosão de uma submunição remanescente da guerra de 2006. Duas delas foram gravemente feridas.
Um relatório do Monitor de Minas Terrestres e Munições Cluster - iniciativa da Campanha Internacional para a Proibição das Minas Terrestres (ICBL) e da Coalizão contra as Munições Cluster (CMC), ambas formadas por redes globais de organizações não governamentais - mostrou que até julho de 2014 ao menos vinte e três países continham áreas contaminadas por fragmentos dessas bombas. A contaminação também é suspeita, mas não confirmada, em outros quinze Estados.
Bombas de fragmentação e o DIH. O Brasil foi um dos países que em 2008 não ratificou – e continua sem fazê-lo – aConvenção de Oslo, tratado do Direito Internacional Humanitário que proíbe, entre outras coisas, o uso, o desenvolvimento, a produção, a aquisição e o armazenamento das bombas de fragmentação. Mais de cem Estados assinaram o tratado naquele ano. Até 2010, ano em que o documento entrou em vigor, 108 países aderiram ao acordo. China, Israel, Estados Unidos e Rússia também estão entre os países que não assinaram.
Segundo o professor da Universidade Federal do Pampa e membro da Coalizão contra as Munições Cluster (CMC),Cristian Wittmann, as munições cluster devem ser banidas porque violam dois princípios fundamentais do Direito Internacional Humanitário: primeiro, por não permitir a distinção entre alvos civis de militares; e segundo, por terem índice de falha que contamina por décadas as regiões atingidas, violam a questão de proporcionalidade militar, com impacto a longo prazo. Os civis, crianças especialmente, são os mais expostos a esses remanescentes. “Essas submunições pequenas, muitas vezes coloridas, são objetos que chamam a atenção de crianças”, afirma Wittmann.
Segundo a Handicap Internacional, 50% dos acidentes com explosivos não detonados têm consequências fatais – não só pela explosão em si, mas também pela terra, bactérias e fragmentos de metais que podem penetrar o tecido humano. A organização, co-vencedora do Nobel da Paz em 1997, estima que existam em todo o mundo 500 mil sobreviventes de acidentes causados por minas terrestres, munições cluster e outros resíduos explosivos de guerra. De acordo com o relatório de 2012 da Coalizão contra Munições Cluster (CMC), 94% das vítimas nessa situação são civis, sendo 40% delas crianças.
As bombas cluster, de acordo com o assessor jurídico do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Gabriel Valladares, são munições consideradas “verdadeiramente desumanas”. Segundo ele, todos os anos, o CICV reitera aos Estados a necessidade de adesão aos tratados do DIH. Aqui no Brasil, os ministérios de Defesa e das Relações Exteriores são lembrados, todos os anos, da necessidade de ratificar o tratado que proíbe a produção dessas armas.
Ele lembra, porém, que os países têm soberania para decidirem sobre questão. “A realidade é que, referente a tratados de armas, como qualquer outro tratado internacional, são só os Estados que podem vir a decidir, através de sua própria vontade soberana, se querem ou não fazê-lo. Cada país dá diferentes motivos para ratificar ou não ratificar”, pontua Valladares.
O Ministério das Relações Exteriores afirmou, em nota, que o Brasil não adere à Convenção de Oslo “por entender que o instrumento possui brechas insanáveis”. O acordo, segundo o órgão, bane os tipos de munição produzidos no Brasil, mas permite mecanismos semelhantes, com tecnologia mais avançadas. Estão excluídas de sanções, pelo tratado, bombas que levam menos de dez submunições, projetadas para alvo único, e que são equipadas com dispositivos eletrônicos de autodestruição ou autodesativação. O Brasil alega que esses armamentos são produzidos apenas por um "pequeno número de países desenvolvidos com indústrias de defesa avançadas" - que ficariam imunes às proibições. O Itamaraty diz que não há intenção do País rever sua posição. O Ministério da Defesa, por sua vez, alegou que as informações sobre materiais de emprego militar possuem confidencialidade, e não se posicionou.
Sob sigilo. Apesar do esforço de diversas ONGs e organizações internacionais para mapear e monitorar os dados sobre o comércio e a utilização de munição cluster, o Brasil é um dois países menos transparentes quanto a informações sobre sua produção nacional. Em 2012, a pedido do jornal Folha de S.Paulo com base na Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Defesa - depois de negar duas vezes o pedido - liberou 1.572 páginas de documentos secretos sobre a exportação de material bélico brasileiro. Foi a primeira e, até agora, última vez que o órgão liberou registros do gênero.
A documentação, referente aos anos de 2001 e 2002, mostra que a exportação de armas e munições movimentou US$ 315 milhões nesse período. Desse montante, US$ 5,8 milhões foram referentes à venda de bombas incendiárias e de fragmentação ao Zimbábue – o país, governado desde 1980 por Robert Mugabe, era na época acusado de interferir na guerra civil do Congo. Foram vendidas 340 bombas completas na ocasião, além de componentes para montagem de 426 munições de fragmentação e 605 incendiárias. Depois da liberação dos documentos, o Ministério da Defesa afirmou que manterá os papéis sob sigilo por no mínimo dez anos.

A reportagem pediu ao órgão registros das exportações de armas brasileiras nos últimos três anos, mas teve a solicitação negada sob alegação de sigilo, conforme o art. 23 da Lei 12.527 – que versa sobre as restrições quanto ao acesso à informação. O dispositivo classifica como restritas, entre outras, informações que possam colocar em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País.
O Ministério da Defesa justificou, no entanto, que o governo adota o que definiu de "criteriosos processos" para a comercialização de produtos controlados em outros países, como é o caso das cluster. Entre os procedimentos, está a consulta ao Ministério das Relações Exteriores sobre a existência de embargos da ONU aos países requisitantes. O gabinete também fica responsável por emitir o parecer sobre a exportação.
Atualmente, segundo o professor Cristian Wittmann, o tipo de munição fragmentária mais produzido pelo Brasil é oASTROS – fabricado pela Avibras Indústria Aeroespacial, instalada em São José dos Campos, Jacareí e Lorena, no interior do estado de São Paulo.
A empresa - que tem apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – define assim, em sua página na internet, o funcionamento do sistema: “dispõe de recursos técnicos para entrar em posição de tiro, e lançar rapidamente uma devastadora e precisa massa de fogo sobre múltiplos alvos”. De acordo comWittmann, um dos argumentos utilizados pelos que defendem a venda do equipamento é o de que o “complexo industrial bélico brasileiro dependeria das vendas do sistema”.
Segundo relatório do Monitor contra Munições Cluster, o sistema ASTROS de Lançador de Múltiplos Foguetes já foi exportado para países como Irã, Iraque, Arábia Saudita e Malásia. Em 1991, foi utilizado por forças sauditas durante aBatalha de Khafji, contra o Irã, deixando número significante de submunições não detonadas. Recentemente, as forças sauditas de coalizão foram acusadas pela Human Rights Watch de utilizarem bombas cluster no Iêmen, causando a morte de civis no país. A Arábia Saudita e outras nove nações árabes que formam a coalizão não são signatárias da Convenção de Oslo, assim como o Brasil.

O juiz e a banalidade do mal

O juiz e a banalidade do mal

"É a banalidade do mal que deixou de ser um simples conceito filosófico para ser o fundamento de um sistema. E o sistema de justiça criminal assim se manifesta, repleto de ações isoladas e “inocentes” que, somadas, produzem as mais graves violações de direitos humanos em solo brasileiro", alerta Haroldo Caetano da Silva, promotor de Justiça, mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, em artigo publicado no blog Justificando, 20-07-2015. 
Eis o artigo. 
Hannah Arendt descreve Adolf Eichmann, oficial alemão responsável pela logística do transporte de judeus para campos de concentração, como um homem que não admitia qualquer culpa no extermínio massivo de pessoas durante o Terceiro Reich. No seu julgamento, reportado pela filósofa alemã de origem judaica no livro Eichmann em Jerusalém (Companhia das Letras, 1999), Eichmann enfatizava que não passava de um mero cumpridor de ordens e, como tal, jamais poderia ser punido por se desincumbir com eficiência das funções a ele acometidas pelo regime nazista. Sua tarefa limitava-se, insistia ele em seus muitos depoimentos, a organizar a identificação de pessoas, encontrar e providenciar rotas de trens; e que não tinha responsabilidade sobre o destino dos milhares de judeus transportados para os campos de extermínio.
Dizendo-se funcionário público exemplar, Eichmann cumpria à risca as ordens superiores, cuja legalidade estava assegurada pelo ordenamento jurídico do regime nazista. Não havia ilegalidade em sua conduta, defendia-se; pelo contrário, agia exatamente como determinava a lei. Assim se manifestava o que Hanna Arendt depois conceituou como a “banalidade do mal”.
Neste breve texto, proponho um exercício intelectual no sentido de traçar um paralelo entre aquela prática nazista, cuja legalidade era atestada por importantes juristas da época, e o contexto atual do sistema penal brasileiro.
Para onde são levados aqueles que são apontados pela polícia como autores de crimes ou aqueles que são condenados pela justiça criminal brasileira?
Foto: justificando.com
Respondo: para presídios como esses das fotos ao longo do texto. Com uma ou outra diferença, a regra geral é a inclusão de homens e mulheres em espaços que em boa parte se assemelham a campos de concentração. Superlotados, fétidos e sombrios ou mesmo em ruínas, os presídios brasileiros são palco de abandono, doença, tortura e morte. Há poucas exceções que por isso mesmo são irrelevantes quando se observa o sistema prisional como um todo. Aviolação da dignidade de seres humanos é rotineira, o que expõe a prisão à máxima ilegalidade, pois contraria aquele que é um dos fundamentos do nosso país enquanto Estado Democrático e de Direito.
A esta altura você, leitor, já pode imaginar aonde pretendo chegar com este texto. Sim, os juízes e tribunais que fazem a jurisdição criminal no Brasil encaminham homens e mulheres para esses lugares aí das fotografias ou, se não esses, outros muito parecidos. Se você tem estômago forte, veja o documentário “O grito das prisões” (2008), produzido pela repórter Fátima Souza e pelo cinegrafista Ocimar Costa por ocasião da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre o Sistema Carcerário, disponível aqui.
Como você irá perceber, o documentário retrata muito bem a prisão, escancarando um pouco dos absurdos que acontecem nesse espaço de que tanto se fala. É basicamente assim que funciona a prisão no Brasil deste início de Século XXI, onde já estão cerca de 600 mil mulheres e homens.
Que a sociedade deva segregar alguns dos seus em função da prática de crimes é algo que não se discute, particularmente no presente momento da história. A abolição do cárcere é uma utopia, bela e até necessária, porém, ainda muito distante. Casos há que exigem, sim, o encarceramento como resposta. Este artigo não questiona esse fato, mas em como se dá a prisão de pessoas e como atua o sistema de justiça criminal em face dessa realidade.
Foto: justificando.com
Então vem uma segunda pergunta: diante do quadro de horror dos presídios brasileiros, como é que juízes continuam a encaminhar homens e mulheres para esses espaços que violam os mais comezinhos direitos fundamentais?
Também respondo: tal qual Adolf Eichmann, convicto de que atuava na estrita legalidade do regime políticode sua época, os juízes brasileiros assim procedem com a certeza de que, ao encaminhar seus réus para a prisão, apenas cumprem com suas obrigações legais. Se Eichmann afirmava desconhecer o destino dos trens repletos de judeus para eximir-se de qualquer culpa, também os juízes criminais brasileiros, ressalvadas as honrosas exceções, não se interessam por conhecer a realidade das quase-masmorras para onde vão os camburões, tampouco o destino de seus prisioneiros uma vez recepcionados do lado de dentro dos muros. E não se incomodam, até por assim não se perceberem, em atuar como meros executores de uma política voltada ao encarceramento em massa que, seletiva, alcança preferencialmente a parcela jovem, negra e pobre da população. São os nossos judeus.
O mesmo vale – e devo fazer o registro – para outros personagens que participam da persecução penal, com destaque para a polícia e o Ministério Público. Com as respeitáveis exceções de sempre, policiais e promotores de justiça, aliás, assumem abertamente e sem qualquer constrangimento o discurso de que o que vale mesmo é a punição, seja a que custo for. A esses agentes do Estado talvez sequer se apliquem as escusas de Eichmann, pois assim o fazem certos de que a sanção penal não precisa respeitar limites e que a violação de direitos dos presos não tem relevância, tampouco significa motivo de preocupação ou culpa, pois seria resposta legítima para a violação a que correspondiam os crimes praticados contra suas vítimas.
Se o inimigo da Alemanha nazista era o povo judeu, aqui os inimigos são identificados no delinquente e no preso. Contra eles toda a força da lei, dentro de um positivismo estúpido. E para que a máquina punitiva atue, tanto naquele regime autoritário quanto neste que se pretende democrático, as engrenagens são lubrificadas com um óleo alienante, o que faz com que os funcionários públicos que conduzem o processo penal não vejam qualquer culpa pelas consequências de seus atos. Afinal, sua atuação cumpre os rituais previstos expressamente na lei e o conjunto da obra, esse resultado de horror e morte no cárcere, não poderia ser a eles imputado.
É a banalidade do mal que deixou de ser um simples conceito filosófico para ser o fundamento de um sistema. E o sistema de justiça criminal assim se manifesta, repleto de ações isoladas e “inocentes” que, somadas, produzem as mais graves violações de direitos humanos em solo brasileiro.
A legalidade formal e, por isso mesmo, superficial, das prisões decretadas por juízes e tribunais dos quatro cantos do país, dissolve-se nos horrores da prisão. Entretanto, tal qual Eichmann, os artífices do sistema de justiça criminal apresentam-se como servidores públicos exemplares, cumpridores da ordem emanada da lei penal e, assim, isentos de qualquer responsabilidade.
Só não é demais lembrar que, mesmo sustentando com muito vigor a legalidade de suas ações enquanto simples cumpridor de ordens, Eichmann foi julgado, condenado e enforcado em Israel.

O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda

O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda

Para Giuseppe Cocco, uma das principais consequências da cooptação pela financeirização é a esquerda neutralizada. O que, por outro lado, faz surgir novas formas políticas de oposição

Por: Márcia Junges e João Vitor Santos

Que efeitos a financeirização da vida como um todo traz para a política? A resposta para a pergunta, que permeia toda esta edição, é pensada por Giuseppe Cocco desde a realidade brasileira e da emergência do momento atual. O cientista político não poupa críticas ao PT — desde os mandatos de Lula — e fala de um governo que se mostra refém do capital. Sob o argumento de que não há escapatória para a voracidade do mercado mundial, na verdade se esconde em razão dessa realidade para servir a interesses privados. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Cocco aponta, entre inúmeras consequências desse cenário, o surgimento da necessidade de pesar uma nova esquerda enquanto real oposição ao atual sistema. “Poderíamos até dizer que hoje ser de esquerda significa acabar com a noção de esquerda, pois ela funciona apenas para domesticar os movimentos e as subjetividades”, dispara.
A materialização da destituição da essência esquerdista, para o professor, se dá pelo fato de o governo não compreender as manifestações que emergem das ruas. “Se ainda há uma esquerda que subsiste, é aquela que está dentro das lutas dos garis, dos professores, das mães dos pobres mortos e assassinados no complexo do Alemão e no Cabula em Salvador. O resto é pura mistificação do poder”, destaca. Cocco discorre a partir de uma lógica do capital, e de uma ideia de política que o serve, para chegar até a neutralização de uma política — em especial a de esquerda. No entanto, no horizonte dos coletivos, vê a inauguração de outro momento. A ideia de trabalho, relação trabalhista, empresariado e trabalhador, débitos e créditos, moeda e política, são realinhados. E, ao longo de todo debate que propõe, retoma discussões sobre os conceitos de Multidão e do Comum como forma de apreender uma abertura ao mundo financeirizado. “O que ‘falta’ hoje é a ‘medida comum’ que torne possível a manifestação da comunidade por meio da articulação das diferenças. O desafio não é a luta contra as finanças, mas a construção das instituições adequadas das finanças do comum, ou seja, que tenham como base a medida do comum”, destaca.
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. O último livro publicado é KorpoBraz: por uma Política dos Corpos (Mauad, 2014).
Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir da crescente financeirização da economia e do aprofundamento das desigualdades, quais são as novas formas políticas que surgem em nosso tempo?
Giuseppe Cocco - Responderei em dois momentos: em primeiro lugar sobre a desigualdade e, em segundo lugar, sobre a financeirização.
No capitalismo contemporâneo, a desigualdade aumenta por causa de um regime de acumulação capitalista que consegue mobilizar o trabalho por fora da relação salarial de tipo fabril e ao mesmo tempo por fora dos marcos nacionais, num terreno imediatamente global (o que se chama, aliás, de “global sourcing”: as redes globais da “terceirização”). Trata-se de um movimento ambivalente, como sempre no capitalismo. Por um lado, o trabalho fabril está perdendo direitos e força (há um movimento de exclusão por fragmentação das grandes massas homogêneas de proletariado fabril); pelo outro, os pobres estão sendo mobilizados como pobres sem mais passar pela relação salarial (há um movimento de inclusão sem homogeneização ou por “modulação”). O trabalho está se tornando “pobre” e os “pobres” estão sendo postos para trabalhar, como pobres.
Um dos marcos dessa ambivalência foi a divergência do andamento da curva que caracteriza a desigualdade nas economias centrais (onde aumentou), comparativamente à curva das economias emergentes (onde teve uma leve inflexão). Os governos Lula foram, assim, o teatro de uma pequena diminuição da desigualdade. Em cima disso, eles construíram duas miragens: por um lado, passaram a afirmar que a pobreza teria desaparecido (não importa que isso não corresponda à evidência da persistência, sempre aparece algum relatório de alguma instituição decretando o que a realidade contesta batendo nas panelas de todo o país); pelo outro, olharam apenas para o oásis das estatísticas de renda e, com base nisso, afirmaram a emergência de uma “nova classe média”. 
Regime fabril autoritário
Contudo, essas duas miragens desempenharam um incrível papel no marketing eleitoral e, ao mesmo tempo, acabaram funcionando mesmo como... miragens: no final da caminhada, não havia nenhum oásis de consenso consumidor e o deserto passou a ser o terreno de um novo êxodo: um novo ciclo potentíssimo e inovador de lutas sociais. O levante de junho de 2013 foi ao mesmo tempo o teatro e a antecipação desse novo êxodo. Os setores de “esquerda” do PT (se é verdade que ainda existem, mas tenho minhas dúvidas) deveriam ter se recusado a esse achatamento teórico e político e multiplicado os esforços por uma abordagem em termos não de “desigualdade” apenas, mas também e, sobretudo, de “exploração” e, pois, de composição social do trabalho. Mas, na realidade, o oportunismo cínico da esquerda e do governismo como um todo apenas deixou subsistir algumas ilhas de empirismo, sem nenhum potencial de renovação teórica e política. Ser de esquerda significa, antes de mais nada, dizer que “há outras relações verdadeiras que não sejam aquelas mensuráveis” .
A “esquerda” (governista e também boa parte da de oposição) passa por um mecanismo mental estranho: ou renunciou a pensar o trabalho e a exploração ou, quando tenta, não consegue fazê-lo a não ser nos moldes de um impossível mundo industrial. A saudade da “classe operária” funciona de maneira paradoxal: ou se procura pelo processo de industrialização que poderia construí-la, ou se renuncia totalmente a pensar a composição social em termos de trabalho (e exploração), e as únicas variáveis que são levadas em conta são a renda e o consumo e marketing eleitoral alimentado pelo (ab)uso dos cofres públicos. 
A incapacidade de pensar o trabalho no capitalismo contemporâneo se transforma, assim, num dos principais álibis para o oportunismo mais deslavado: assumir como horizonte a figura e os valores da “classe média”. Isso implica em desdobramentos irônicos, mas também um tanto perversos: os setores críticos do governismo criticam mais as mobilizações sociais do que o governo e o petismo, que apenas serão acusados de ter subestimado o nível de “alienação” da sociedade e dos “consumidores”. Assim, a “esquerda” ou pensa a alienação como perda de consciência, ou pensa industrialização como condição da consciência. Por um lado, aponta-se um universo totalitário de controle pelo “consumo”, pelo outro se olha com simpatia para a China. Esquece-se que um dos maiores mecanismos de amplificação da desigualdade é... a China “comunista”: por um lado, o regime chinês incluiu milhões de pobres no chão da fábrica, pelo outro os controla com uma mão de ferro, versão contemporânea e global da opção totalitária pela industrialização forçada que Lênin havia inaugurado na recém criada URSS!
Mais uma vez, a tal de “ditadura do proletariado” é apenas uma ditadura e o tal de “socialismo” se resolve num regime fabril autoritário que beira a escravidão: organizado pela política de controle dos fluxos migratórios internos, com cerca de 200 milhões de rurais que vivem nas cidades sem permissão legal, ou seja, sem direitos. Essa escravidão chinesa aparece abertamente quando o Ministério Público do Trabalho decide — raramente — reprimi-la aqui no Brasil .
Finanças como deus ex machina
Só que dessa vez a ausência de liberdade sindical e de democracia tout court  constituiu um verdadeiro paraíso para o capital global (e não apenas para o capital nacional). Não apenas se esquece desse papel nefasto da China como maior deflator dos salários reais do mundo como um todo, como também não falta quem a transforme num “modelo” econômico e até político a ser seguido.
Em segundo lugar, precisamos refletir um pouco sobre as ‘finanças”. Em geral, o tema da “financeirização” é muito mal encaminhado. Ainda pior quando é usado e, sobretudo, abusado para “justificar” ou “explicar” quase tudo: desde os oportunismos mais rasteiros até a mais total indigência teórica. Em geral, é a desculpa esfarrapada para dizer que “os governos, pobres coitados”, são “reféns do capital financeiro”. O regime discursivo é que os governos (sobretudo as coalizões do PT) não conseguem fazer o que eles gostariam de fazer porque “as finanças não os deixam”. As finanças são como um deus ex machina, explicam tudo: desde Kátia Abreu  até Gilberto Kassab , passando pela austeridade e a mágica transformação do “Muda Mais” eleitoral num estalinismo fora da época: “Ajustar para Avançar”.
O governo do PT “não pode”, não por suas eleições serem bancadas pelas máfias de empreiteiras, capital imobiliário, empresas de ônibus, grandes bancos, montadoras multinacionais e, enfim, indústria das armas, mas porque na realidade é “vítima” ... do capital financeiro: mas não foi o capital financeiro a “impor” Copa e Olimpíadas, e tampouco é o capital financeiro quem decide gastar quase todo o dinheiro do PAC-Social nos teleféricos inúteis; também não foram as finanças quem determinou que se jogasse rios de dinheiro no subsídio absurdo às montadoras multinacionais. Enfim, a chantagem financeira produz cinismo de sobra!
Vamos então tentar fazer uma reflexão mais rigorosa, embora esquemática: o que se diz sobre dinheiro (moeda) e finanças em geral é muito ingênuo e alavanca um moralismo bastante problemático. Isso é ainda mais paradoxal quando se trata de uma crítica, pois aceita-se no fundo a visão “substancialista” da moeda (e, pois, das finanças) desenvolvida pela economia política clássica e neoclássica. Ora, o que é importante lembrar é que a moeda é a base das finanças e, ao mesmo tempo, é totalmente relacional: totalmente ligada às instituições que regulam o que não deixa ser uma questão de confiança (e, nesse sentido, de fé!). 
Isso significa que a moeda tira a sua legitimidade do tipo de comunidade, ou seja, do tipo de relações sociais, que a produzem e que, ao mesmo tempo, ela produz em retorno. O que assistimos hoje não é a separação da dinâmica monetária e financeira com relação à “esfera” que seria “real” da economia (a indústria), mas a uma crise do valor — dos sentidos e das instituições que fundam e regulam essa “fé”. O que “falta” hoje é a “medida comum” que torne possível a manifestação da comunidade por meio da articulação das diferenças. O desafio não é a luta contra as finanças, mas a construção das instituições adequadas das finanças do comum, ou seja, que tenham como base a medida do comum.
Trabalho e endividamento
Então, poderemos dizer que as “finanças” não são nenhuma novidade: elas são consubstanciais e mesmo anteriores ao capitalismo, já antes que esse existisse como modo de produção, ou seja, já existiam no capitalismo mercantil. Então, onde está a novidade? A novidade está no conteúdo novo do trabalho (imaterial: subjetivo) e do valor (intangível: cognitivo) e, exatamente por causa disso, no papel estrutural e de tipo novo que as finanças desempenham no capitalismo como um todo. As finanças, hoje, têm uma capacidade incrível de multiplicação da liquidez e se tornaram o principal mecanismo de criação monetária: as crises e desequilíbrios que as caracterizam são do capitalismo como um todo, e não da desproporção entre o que seria a esfera real (industrial) e a esfera fictícia (financeira).
As finanças desempenham um duplo papel estratégico no capitalismo contemporâneo: por um lado, pela capacidade crescente de criação de moeda, elas têm o papel chave de mobilização do trabalho não mais dentro da relação salarial, mas dentro da relação de crédito/débito; pelo outro, diante da crise da lei do valor (tempo de trabalho), as finanças se propõem como “nova métrica”. A relação de débito e crédito substitui a relação salarial exatamente na medida em que hoje “trabalhar” significa “produzir as condições para poder trabalhar”, ou seja, produzir seu próprio “capital social” (chamado também de empregabilidade) e também sua própria mobilização (terceirização: a transformação, essa sim fictícia, da pessoa física em pessoa jurídica).
O trabalhador é precário e nesse sentido um Santo: San Precario , diz o movimento italiano. O trabalhador precário é um Santo que todos os dias precisa realizar o milagre que permite “resolver” o enigma de produzir-se a si mesmo. Ora, o mistério do milagre é óbvio: não há outra maneira de fazê-lo a não ser pelas despesas públicas (de saúde, educação, moradia, serviços em geral) ou, quando os serviços foram privatizados ou não são mais gratuitos e são péssimos, por meio do endividamento! Esse trabalho que produz “trabalho” e envolve a vida como um todo é mobilizado por meio da relação de débito e crédito. Trabalho que produz trabalho significa, na realidade, produção de formas de vida a partir de formas de vida, uma atividade que não cabe mais na “jornada” de trabalho e investe a vida como um todo. A lei da mais-valia não consegue mais dar conta de uma exploração que não se apropria mais do tempo de trabalho “excedente”, mas dos “suplementos” de vida: de subjetividade.
O fiasco do Brasil Maior
Assim, a “centralidade” das finanças é fruto de um movimento duplamente paradoxal: elas se tornaram o próprio mecanismo de governança do capitalismo cognitivo, e isso na medida em que a relação salarial é substituída pela relação de débito/crédito e o valor se torna intangível; ao mesmo tempo a acumulação de tipo cognitivo passa a explorar uma cooperação social (as redes e as ruas) que é “primeira” (ou seja, não é mais consequência da relação salarial). As finanças não apenas são mais uma “esfera” específica (nunca foram “separadas”), mas são o próprio cerne do regime de acumulação do capitalismo contemporâneo, organizado em torno da circulação, dos serviços e por isso pode ser “terceirizado”. Não há reforma das finanças sem mudança do ou no capitalismo.
Contudo, é preciso dizer que não existe nenhuma relação de causa e efeito entre o papel geral que desempenham as finanças no mundo e as taxas de juros e a crise brasileiras: depois de 13 anos de governo do PT, é escandaloso que o Brasil ainda tenha hoje a maior taxa de juro real do mundo. São cinco aumentos desde o dia seguinte do segundo turno e o sexto aumento já está anunciado: “Os avanços no combate à inflação ainda não se mostraram suficientes”, segundo nota do Copom relatada pelo Valor . A crise que vivenciamos, além da mentira eleitoral que a encobriu, é específica do fiasco do Brasil Maior, ou seja, da política econômica do governo Dilma-Lula. 
A aventura neodesenvolvimentista (a partir de 2008) se deve em boa parte à ilusão de “resolver” os “defeitos” da financeirização por uma crescente intervenção estatal de apoio aos “global players” escolhidos a dedo pelo BNDES , como no caso paradigmático de Eike Batista  (que agora Dilma e Lula esquecem de citar como campeão do “Brasil Rico, País sem Pobreza”). Além de não dar nenhum resultado em termos de reindustrialização, foi um desastre macroeconômico cujos custos (sociais) estão sendo repassados aos pobres pelo mesmo governo que disso é responsável. Mentiram duas vezes: disseram que não fariam ajuste e que não precisava fazer e, ainda por cima, ficam debochando da indignação social que tudo isso suscitou, com os moradores das favelas do Turano, do Morro dos Cabritos, da Zona Norte do Rio que batem panelas sendo chamados de “elite branca”.
Enquanto isso (sem falar da Petrobras), o país é submetido a um mix bizarro de ajuste fiscal (para conter a inflação), aumento generalizado das tarifas administradas e da pressão fiscal (um verdadeiro confisco não declarado) e regurgitos autoritários: militarização das favelas no Rio e em Salvador; aprofundamento da “nova guerra fria” — assim um conhecido intelectual português definiu a vitória de Dilma; convites por colunistas governistas para que Dilma trate as manifestações de indignação nas ruas do 15 de março e 12 de abril da mesma maneira que a ditadura chinesa tratou a comuna democrática da Praça Tiananmen em Pequim (em 1989). São todos sinais da maneira como pensa a esquerda governista e da permanência de seus reflexos autoritários. Como no estalinismo, isso não significa nenhuma oposição entre “estado” e “capital”, e ainda menos entre “esquerda” e “direita”, mas uma grande cumplicidade que se faz pela imposição do consenso. 

IHU On-Line - Qual é a atualidade do conceito de multidão para pensarmos em novos protagonismos políticos?
Giuseppe Cocco - Depois de junho de 2013, o conceito ficou algo como incontornável e, como tudo que se generaliza, acaba sendo ao mesmo tempo objeto de disputa e de banalização teórica e política. O debate sobre “multidão” está se tornando até divertido. Com certa dose de reducionismo, podemos resumir esse “debate” em três níveis (não necessariamente separados entre eles). Um primeiro nível é aquele mais rasteiro e que definiremos o do governismo indigente. Trata-se de oportunistas que acabam de adotar o termo (e não o conceito) e o usam como um ridículo critério de “mensuração” para dizer qual mobilização social seria “boa” e qual seria “ruim”. Um segundo nível — apenas mais sofisticado — é do discurso artista que pretende surfar no efeito de “moda” por meio de um trabalho de purificação ou de manipulação. Um terceiro nível é aquele dos que transformam a multidão em um impossível sujeito já dado.
Na melhor das hipóteses, a vertente do governismo indigente se resume no esforço de saber se a realidade se encaixa, ou não, na nova categoria. Trata-se de uma operação bastante “miserável” que repete as tentativas de decidir se uma determinada mobilização social é de “esquerda”, ou não. Assim, os mesmos que em junho de 2013 estavam com aqueles que o diziam golpista e fascista, estarão agora dizendo que em junho, sim, havia multidão (fazendo de junho um mito), ao passo que, sendo para eles as manifestações do 15 de março e do 12 de abril “conservadoras”, não se pode chamá-las de “multidão”. Chegamos ao ridículo: não é o conceito que precisa ser adequado a dinâmicas reais, é a realidade que deve servir ao conceito! Por trás da indigência, esconde-se a tentativa de uma respiração boca a boca no cadáver do governismo pela manutenção de algo como uma interdição “moral” com relação à justa indignação do 15 de março e 12 de abril (e dos panelaços). O curioso é que essa postura de querer decidir qual é o protesto legítimo e qual não é, no fundo, é uma impostura, como foi a repressão do movimento contra a Copa. O estalinismo tem caras diferentes e se renova exatamente por meio dessa afirmação de que haveria protestos legítimos (aqueles aparelhados pelo governismo) e outros ilegítimos. A Venezuela nos mostra de maneira ainda mais vergonhosa no que isso pode se transformar.
Diferença é resistência
A segunda vertente, aquela artista, quer se apropriar do conceito para controlar a “marca” e para isso precisa fazê-lo passar por um processo de purificação. Em junho de 2014, no Sesc-Pompeia de São Paulo, a multidão virou multitude! O próprio Negri  disse que assim a “multidão” era transformada num “bacio Perugina”, aquele bombom pronto para a venda. Ao mesmo tempo, quando foi perguntado sobre a banalização dos termos, por exemplo, por parte de uma mídia que se dizia “mídia da multidão” (o que é uma contradição nos termos, pois por definição não pode haver “a” mídia da multidão, mas uma “multidão de mídias”), ele respondeu de maneira ambígua, dizendo que “isso era até necessário” para que se afirme algo como a hegemonia do conceito, seria como que um “preço a ser pago” ao “sucesso”. Contudo, num panfleto no qual ele acerta as contas com a filosofia e o pensamento italiano, o próprio Negri se refere a como “o pensamento fraco traduziu para o italiano um Foucault  e um Deleuze  travestidos de soubrettes, fazendo-os dançar nas páginas culturais dos jornais da dita ‘esquerda’ (...)” . 
Em seguida, ele faz mais duas afirmações atualíssimas para entender o que queremos dizer: em primeiro lugar, ele diz que o “parentesco” entre filosofia francesa e o pensamento “italiano” das décadas de 1960 e 1970 não é uma filiação, porque “mesmo que essas posições fossem filhas das teorias francesas (de Merleau-Ponty , Foucault e Deleuze), elas viveram e cresceram dentro de ambientes selvagens, são filhas da floresta. As concepções da diferença se movem num irredutível ontológico, imediato, formado nas lutas” . Então, nós diremos que a “diferença” italiana está no fato de que, na península, realizou-se por um momento o que Merleau-Ponty afirmava em 1945, nas últimas linhas de sua Fenomenologia da Percepção: “(...) a filosofia (...) se realiza destruindo-se como filosofia separada” . “O fato é que diferença é resistência” . O pensamento italiano da diferença não cabe na cena de um teatro, mesmo que alguém possa conseguir fazer dançar como uma soubrette alguns teóricos . 
Estelionato eleitoral de outubro
A terceira vertente é aquela que faz da “multidão” um sujeito já dado, um novo protagonista, uma modalidade sociológica ou até uma nova modalidade do direito do indivíduo como sujeito que renova e reafirma a filosofia do direito natural. Trata-se da maneira como os setores mais antenados do pensamento conservador (ou neoliberal) apreendem as mobilizações sociais desses últimos anos e, em particular, as grandes manifestações do 15 de março e do 12 de abril e os vários panelaços (o último tem sido o mais impressionante, no dia 2 de maio passado, durante o programa eleitoral do PT na TV). Para essa abordagem, as manifestações que não se encaixam nas formas tradicionais dos partidos, sindicatos ou grêmios estudantis são automaticamente de “multidão” e a multidão está além de qualquer horizonte de conflito: “as recentes manifestações desconstroem o antagonismo do pobre contra o rico, negro contra branco, elite contra povo” escreveu depois do 15 de março José de Souza Martins .
Quando não afirma — como fez uma filósofa que usa Spinoza , que a multidão era fascista —, o governismo usa esta abordagem (em negativo) para dizer que “não é multidão”. Não é “multidão” porque as manifestações não são de “esquerda” e são contra o governo e o PT. Nisso o governismo, que gostaria de usar esse termo, se mostra ao mesmo tempo masoquista e irresponsável: a melhor maneira de destruir o que sobra da marca “esquerda” é insistir no estelionato eleitoral de outubro, ao passo que desqualificar as mobilizações de rua é entregá-las à direita social (o que em parte já aconteceu).
Contudo, essa abordagem da multidão como categoria sociológica nos permite, enfim, dizer algo sobre a pertinência desse conceito: fora das dinâmicas de sua constituição, não há multidão dada a priori. O homem não nasce “civilizado”, dizia Spinoza, mas se constitui como tal. Como diante de junho de 2013 (sobretudo às manifestações oceânicas do 17 e 20), a questão não é de “decidir” se o 15 de março, o 12 de abril e os vários panelaços são “multidão”. É simplesmente estúpido colocar essa questão. O que interessa é o fazer-se da multidão. Em junho, todo mundo foi “fazer multidão”, sem medo. Hoje, o governismo conseguiu expurgar, chantagear, paralisar e a justa indignação está entregue a uma captura conservadora. A linha auxiliar mais patética e mais irresponsável desse patrulhamento são justamente aqueles que gostam de usar o termo “modernoso” e sequer admitem os fatos, por exemplo, que a composição sociológica da avenida paulista era extremamente diversificada ou que o panelaço aconteceu — pelo menos  — nas favelas do morro dos Cabritos e naquela do Turano e em toda a zona norte do Rio (Tijuca, Meier, Madureira). 

IHU On-Line - Em nosso país, quais seriam as expressões dessa multidão nos protestos ocorridos de 2013 para cá?
Giuseppe Cocco - Em função do que acabamos de dizer acima, não se trata de saber quais seriam as expressões da multidão, mas usar o conceito de multidão para entender que hoje os protestos passam por outras dinâmicas: não mais pela afirmação identitária de um “uno” (o povo, a massa ou a classe), mas pela produção da diferença e pela diferença. Essas novas formas de subjetividade não se deixam reduzir ao uno e ao mesmo tempo mantém um perspectivismo, um ponto de vista coletivo sem o qual não haveria nenhuma produção ética de outro valor, de outros sentidos. Esse perspectivismo está no fato de que a multidão é um conceito que vai além daquele tradicional de classe sem deixar de ser também um conceito de classe. Ou seja, o que se torna múltiplo, quando luta, é o trabalho: mas um trabalho totalmente outro. Observar a composição do ativismo pós-junho é talvez a melhor maneira de apreender essa composição: um trabalho ao mesmo tempo intelectual e precário dos jovens dos serviços avançados, estudantes e jovens da periferia e das favelas que têm acesso aos estudos e às redes.
Assim, é nos desdobramentos “sindicais” das mobilizações de junho que podemos melhor entender o conceito e encontrar o fazer-se da multidão e seus desafios. Depois das primaveras árabes, do 15M espanhol e de junho de 2013 no Brasil, fica evidente que há uma nova dinâmica de mobilização social que não passa mais pelos grandes processos de homogeneização, sejam eles aqueles produzidos pelas clivagens de classe ou pelas dinâmicas das “massas”. A generalização da relação salarial e das formas de organização (sindical e/partidária) que lhe estavam atreladas não é mais a condição necessária das lutas. Ao contrário, depois de junho assistimos à multiplicação de greves autônomas (os professores, os garis, os bancários, os motoristas de ônibus) inspiradas pelas lutas de tipo novo.
Aqui, o cinismo governista aparece com uma cara nojenta: choram diante dos panelaços, mas apoiam e organizam uma repressão feroz das mobilizações de novo tipo. Por exemplo, com perseguição, demissões e inquéritos judiciais contra a bela luta autônoma dos garis do Rio de Janeiro.
Brecha democrática
A ausência de homogeneidade da composição de grandes conjuntos sociais (por exemplo, grandes “categorias” de trabalhadores — como os metalúrgicos que se reúnem para trabalhar no mesmo chão de fábrica e podem ser reunir para fazer greve juntos) não é mais um obstáculo à mobilização social. Mas se trata de mobilizações de tipo novo: acontecem mais por autoconvocação e passam por lutas que — socializando-se — se territorializam. A luta dos professores do Rio de Janeiro, em setembro e outubro de 2013, se inspirou no movimento do “ocupa câmara”  e, em retorno, o inspirou e massificou ulteriormente. 
Sempre no Rio, a greve autônoma dos garis em fevereiro de 2014 se inspirou na socialização da luta dos professores em outubro e constituiu mais um potentíssimo momento de “sindicalismo social”: sem mobilização social, a greve não teria tido sucesso. Ao mesmo tempo, os garis hoje reforçam o debate pós-mobilizações de junho colocando, no final de 2014 e início de 2015, a urgência da construção de novas institucionalidades. Em julho de 2013 isso acontecia também entre o Ocupa Cabral  – Ocupa Câmara (que prolongava a luta pelo passe livre no terreno da democracia) e os moradores da Rocinha que articulavam as lutas de junho com a crítica da pacificação. Hoje, as lutas pela paz que movem os moradores dos Complexos da Maré e do Alemão são atravessadas pela experiência da brecha democrática do movimento “Cadê o Amarildo” .
Há uma circularidade das lutas, com movimentos de “idas e voltas”: das lutas de categoria para as mobilizações sociais nos territórios e vice-versa. O sindicalismo que está nascendo é de tipo social, ao passo que as lutas territorializadas (pelo passe livre, contra as remoções nas favelas) têm na autonomia dos trabalhadores como os garis, os bombeiros ou os professores seus desdobramentos possíveis. O fato de as singularidades cooperarem entre si não implica nenhuma fusão nas figuras do “uno”: massa, povo ou classe e sequer nas formas tradicionais de organização sindical e partidária. As singularidades cooperam entre si e se mantêm tais: o princípio da cooperação fica interno à sua produção e não se separa dela por meio dos mecanismos da identidade classista ou popular, sequer fusiona na figura consensual de uma massa domesticada por seu líder carismático. A extrema fragmentação social produzida pelo subdesenvolvimento (a pobreza) ou pelas políticas de austeridade não é mais um limite intransponível para processos de recomposição das subjetividades. 

IHU On-Line - Nesse cenário, o que significa ser de esquerda hoje?
Giuseppe Cocco - Vou dividir minha resposta em duas partes: uma inicial, mais impressionista e urgente, e uma mais reflexiva. Assim, para começar, podemos dizer que hoje “ser de esquerda” não significa mais nada, a não ser uma mistificação e, pior, uma mistificação que funciona: no Paraná “tucano”, o ajuste fiscal é combatido por todo mundo. No nível federal (“petista”), o ajuste fiscal ainda não encontra a oposição que mereceria por causa dos efeitos devastadores sobre a subjetividade que teve o voto “crítico” de outubro de 2014. Ou seja, se o tremendo ajuste que está sendo imposto não encontra hoje os protestos adequados, é por causa da “esquerda”. Diante disso, poderíamos até dizer que hoje ser de esquerda significa acabar com a noção de esquerda, pois ela funciona apenas para domesticar os movimentos e as subjetividades. 
O que é ser de esquerda diante desse estelionato eleitoral e político? O que é ser de esquerda quando a suposta esquerda do PT coloca hoje (nesses dias), para debater, um deputado que votou pela precarização do seguro-desemprego ou um ex-secretário municipal de Habitação que participou ativamente da política de remoções dos pobres no Rio de Janeiro? O que é “ser de esquerda” quando o governador (PT) da Bahia comemora as execuções sumárias de jovens negros por sua PM? Não significa mais nada, a não ser essa propaganda irresponsável que pretende manter a ideia abstrata de “esquerda” e de suas bandeiras vermelhas. Se essa é a noção residual de esquerda, precisamos nos livrar dela, e o mais rapidamente possível.
Revolução de direita, devolução de esquerda
Num segundo momento, podemos tentar algumas reflexões no horizonte da história do pensamento político e/ou jurídico. É curioso constatar que as poucas pessoas que — no PT — pensam o conceito de “esquerda”, citam e se referem a Norberto Bobbio . Ou seja, a um pensador liberal: Bobbio pensa a liberdade como um atributo individual e natural em oposição à sociedade como esfera abstrata. É por isso que, em seu livrinho sobre Destra e Sinistra, ele coloca a democracia representativa (liberal) como o cerne, entre a liberdade (que seria a caraterística da “direita”) e a igualdade (que marcaria a “esquerda)”. 
Numa resenha de uma tradução britânica da obra de Bobbio, Negri cita essa passagem: "nós devemos, dada a falta de alternativa, defender as regras do jogo: democracia formal, apesar de suas falhas e contradições, ou seja, sua garantia do direito à liberdade, eleições periódicas através do sufrágio universal, governo de maioria, ou como quer que o mesmo seja interpretado de parte a parte. Todas as demais promessas a respeito da soberania popular, igualdade, transparência do poder, equidade, etc. são simplesmente promessas excessivas e vãs que não poderiam ser cumpridas...”. Negri comenta em seguida: “Cabe lembrar que Bobbio sempre viveu em Turim (a cidade da FIAT) e, no entanto, em toda sua obra não há uma única menção que seja à classe operária de Turim, apesar do papel proeminente dessa última como protagonista da história italiana contemporânea” . 
A democracia direta, ou seja, a luta para juntar liberdade e igualdade, estão ausentes no pensamento de Bobbio e — pelo visto — no horizonte da reflexão político-teórica do que sobra de esquerda no Brasil, e não apenas: será por isso que esses dirigentes também enxergaram no levante de junho de 2013 apenas algumas formas de fascismo? Quando a isso juntamos a paisagem política desenhada pelo escândalo na Petrobras, podemos ver como nos encontramos numa situação parecida com aquela que o mesmo Negri descrevia em 1994, logo depois da queda da URSS e da chegada ao poder de Silvio Berlusconi  na Itália, algo como uma revolução da direita e uma devolução da esquerda: “Hoje, na Itália, existem duas sociedades parasitárias: uma é a máfia, a outra é a esquerda, com seu cortejo de sindicatos e cooperativas... Mas falar assim pode parecer talvez excessivo: pois a esquerda sequer alcança a dignidade do crime que envolve a máfia, ela é apenas um cadáver ambulante. Diante da vitória reacionária, sua resposta heroica foi de gritar ao fascismo” . No caso brasileiro é ainda pior, pois desde junho de 2013 a “esquerda” só desejou que o movimento fosse de direita.
Desdobrando o que acabamos de dizer num segundo nível, podemos tentar reformular a clivagem direita — esquerda. Por um lado, definimos como de direita aqueles que acreditam, defendem e apostam apenas nos mecanismos sociais (nas relações sociais) em vigor (por isso são “conservadores”), ou seja aqueles que apenas enxergam a capacidade capitalista de mobilização (e organização) das forças produtivas. Pelo outro, seriam de esquerda aqueles que apostam e acreditam em outro tipo de mobilização. Olhar para a esquerda pelos olhos de Marx  significa também acrescentar a essa visão inicial (da esperança, da utopia) um perspectivismo materialista, uma definição do sujeito que contém dentro de si — de suas lutas de resistência — uma mobilização alternativa, um outro mundo possível, a capacidade de transmutar todos os valores. É aqui que cabe o verdadeiro debate sobre “direita e esquerda”. Qualquer discussão que não leve em conta essas dimensões básicas da clivagem é mistificadora: ou atribui o campo da esquerda ao moralismo impotente (no máximo utópico e impotente ou apenas liberal e, pois, conservador), ou na realidade reproduz o mecanismo fundamental do estalinismo. 
O estalinismo não é apenas Stalin. Ele começa com a morte de Lênin , mas que já estava dentro do bolchevismo e do reformismo oportunista, assim como escrevia consternado o militante anarco-comunista Alexander Berkman  em 1925, depois de ter participado junto dos bolcheviques da guerra civil na Rússia: “A caraterística fundamental da psicologia bolchevique é a desconfiança diante das ‘massas’. Para os bolcheviques, o povo tem que ser educado à liberdade sem vacilar no uso da coação e da violência. Assim eles renunciavam à via que conduzia diretamente à criatividade das massas. Coagir o proletariado em todas as suas formas, (...), começando pelas execuções sumárias e concluindo pelo trabalho obrigatório é, apesar de parecer paradoxal, um método para refundar o material humano da época capitalista na humanidade comunista. Disso resulta que toda livre iniciativa, que seja individual ou coletiva, é eliminada” . Se ainda há uma esquerda que subsiste é aquela que está dentro das lutas dos garis, dos professores, das mães dos pobres mortos e assassinados no complexo do Alemão e no Cabula em Salvador. O resto é pura mistificação do poder. 

IHU On-Line - Em que aspectos as agressões às bandeiras não demonstram mais a materialidade das lutas e apontam, ainda, para a crise das lideranças políticas?
Giuseppe Cocco - As agressões às bandeiras demonstraram a materialidade das lutas, a recusa de toda liderança imposta desde cima, a afirmação que os líderes são — exatamente porque impostos — impostores. A ênfase que o governismo deu a esses episódios e a procura para que eles se repitam mostram o interesse do PT em mistificar o debate ao invés de enfrentá-lo. Ao contrário, a crítica política não deve limitar-se às ideias (bandeiras), mas ocupar-se das condutas que essas ideias (bandeiras) escondem ao invés de expressá-las. O PT e o governismo gritam continuamente ao golpismo e ao fascismo. Ora, cabe lembrar que uma das caraterísticas do fascismo é seu imoralismo. O que faz o fascismo nas suas origens, lá nas décadas de 20 e 30? Ele pega a crítica marxista (socialista) ao liberalismo e às ilusões kantianas de uma democracia moral (que supõe que a violência aparece de maneira apenas episódica numa história natural e humana fundamentalmente racional) para justificar não mais — como faziam o movimento operário e os socialistas — a afirmação de outros valores, mas uma política imoral: “recusando definitivamente o julgamento das consciências e fazendo da política uma técnica da ordem onde os julgamentos de valor não têm mais lugar” . 
É exatamente isso que está fazendo o PT no governo, com um cinismo extremo do qual a formação do atual governo, com esse primeiro ministro ultraneoliberal, é uma exemplificação perfeita. Há uma passagem curiosa de Merleau-Ponty sobre a percepção da cor na qual ele toma o exemplo do vermelho: ele lembra que Descartes dizia que quando “sinto o vermelho, tenho certeza de senti-lo e ao mesmo tempo posso duvidar de sua própria existência” . O idealismo cartesiano dissocia então o sujeito (que percebe) do objeto (o vermelho percebido). Contra isso, Merleau-Ponty afirma que essa dissociação não é possível: se “eu entendo por vermelho aquilo que se oferece à minha percepção, a evidência do sentir é também a evidência do que é sentido, sujeito e objeto estão juntos”. O “sujeito” que nos interessa é aquele cujas bandeiras estão implicadas na materialidade dessa existência e não penduradas em cima dela, no céu das ideias.
Se ainda há uma noção de esquerda, é esse materialismo que necessariamente é também um perspectivismo: a esquerda (a bandeira que interessa) é uma determinada perspectiva sobre o mundo e, pois, não pode existir fora da carnalidade dessa perspectiva. Ou seja, é das lutas dos escravos contra a escravidão, dos operários contra a exploração, dos pobres, dos índios e das mulheres contra as relações contemporâneas de dominação.

IHU On-Line - Na última entrevista que concedeu à IHU On-Line, o senhor afirma que no Brasil “a brecha democrática parece ter sido fechada definitivamente”. Quais são os fatores que colaboram para esse fechamento?
Giuseppe Cocco - Talvez esse fechamento não seja definitivo, mas por enquanto estamos assistindo a um brutal ajuste fiscal, com quebra de direitos adquiridos, aumento das tarifas administradas de serviços públicos de péssima qualidade, aumento das taxas de juros, militarização ulterior dos territórios onde vivem os pobres sem que haja uma mobilização social adequada. A isso se junta a feroz repressão das formas de organização autônoma dos trabalhadores, como no caso do Paraná e dos garis do Rio.
Há três fatores desse fechamento: a repressão de junho de 2013 (é preciso lembrar que no Rio de Janeiro há uma monstruosa operação policial e judiciária que transformou toda forma de participação democrática em “crime” e está prestes a condenar 23 ativistas por algo que nunca fizeram), o sucesso nefasto da propaganda eleitoral mentirosa que abalou as subjetividades por dentro delas, os limites políticos do ativismo. A campanha pela Copa das Copas já mostrava essa involução e a campanha eleitoral foi mesmo o fim da picada, porque conseguiu bipolarizar as consciências. O nível de mistificação da propaganda era incrível durante as eleições, mas observando o governo que a Dilma e o Lula montaram e a política que fazem (e isso depois de 13 anos de governo)... dá para se perguntar qual foi a real razão que os levou a realizar esse esforço. ■

O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda

O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda

A página de UniNômade, 26-07-2015, ao reproduzir a entrevista de Giuseppi Cocco, sociólogo, concedida à IHU On-Line, no. 468, sob o título "O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda, publica uma introdução de Bruno Cava que reproduzimos a seguir.
Eis o artigo.
Introdução
Quem começou o dilúvio
Com rigor de análise, nesta entrevista Cocco aponta a profunda mistificação à esquerda do debate brasileiro em 2015. Mistificação que não descansa, simplesmente, em falsas ideias vigentes nas cabeças dos esquerdistas, em falsas crenças induzidas por conceitos inadequados. Assenta-se, isso sim, num esgotamento real, sensível, histórico, dos modos de implicação dessa própria esquerda no projeto governista ou do PT (ou da esquerda do PT), esterilizando em consequência qualquer práxis transformadora ou organização de ação, que permitissem contribuir para alternativas e saídas da crise.
Segundo Giuseppe, tal mistificação passa, em primeiro lugar, pela reedição da dicotomia entre capital financeiro e um estado intervencionista, que seria capaz de regulamentar a dinâmica supostamente gananciosa do lucro e caótica da acumulação. Essa dualidade geralmente assume tons morais e se deve, sobretudo, à oposição entre mercado e estado: seria possível produzir uma correlação de força no interior das forças do capital que, com a ideologia certa, pudesse levar à ocupação do estado por uma vontade política capaz de tensionar o grande capital, a favor da renda do trabalho, combatendo assim a especulação e o rentismo.
A gramática antineoliberal dos anos 1990 reaparece, dessa forma, introduzida à força no cenário bastante diverso de 2015, depois das transformações da composição social e de classe dos anos 2000 e das expressões biopolíticas de um novo ciclo de luta, em especial, na expressão máxima das jornadas de junho de 2013. Ignorando as mudanças reais do mundo, a lógica da “correlação de força” se torna simplória, restringindo-se a um braço-de-ferro entre o capital financeiro e o estado mais ou menos dirigido pela esquerda, numa disputa linear de forças que se resolveria, feitas as contas, nos planos macroeconômico e geopolítico.
Dessas premissas, decorre a tão conveniente leitura que Dilma e o PT, no primeiro mandato, tentaram afirmar uma relação melhor entre capital e trabalho, por exemplo, na redução dos juros, mas acabaram vencidos e subjugados 1) pelo inimigo externo dos mercados, 2) pelo inimigo interno do “avanço conservador”. Apesar disso, da derrota que hoje cabe reconhecer com a indicação de um banqueiro para comandar a Fazenda, apesar disso havia e continua havendo uma intenção ideológica que, uma vez retomado o crescimento, resgatará a ação ideológica de esquerda. Com isso, o “ajuste fiscal” — o teor real do slogan eleitoral “muda mais” — é desculpado como imposição, enquanto Dilma apenas aparece como uma governante enfraquecida, refém das circunstâncias, como se superada por uma crise.
O erro é duplo, de premissa e de perspectiva.
Primeiro, erro do que seria uma remobilização produtiva capaz de alterar a configuração de forças, antes de chegar às contas da macroeconomia e da geopolítica. O governo Dilma e o PT apostaram numa visão do que seria “setor produtivo”, segundo o esquema neodesenvolvimentista, apostando na aliança com os empresários comprometidos com o desenvolvimento nacional, isto é, agrobusiness, montadoras, empreiteiras, mineradoras e indústria do Petróleo, nessa lógica para privilegiar campeões nacionais, os “brazilian global players”, ainda que eles sejam… Eike BatistaKátia Abreu, aJBS/Friboi. Como se a Odebrecht fosse patrimônio do povo brasileiro.
Em segundo lugar, erro da perspectiva, ao desconsiderar inteiramente a capacidade criativa e antagonista de uma nova composição de classe, num discurso decadentista em que o PT, em especial a esquerda do PT, se coloca como último bastião das conquistas sociais em meio a um caldo amorfo e conservador das massas. Os preconceitos esquerdistas contra os evangélicos em geral (amiúde identificando avanço conservador com avanço evangélico), assim como a desqualificação de panelaços e outros protestos anticorrupção, são exemplares dessa operação, alimentada diariamente pela blogosfera e a facebukosfera progressistas.
Como Giuseppe explica, parafraseando-o: “sem democracia operária só resta virar playground do capitalismo.” Os dois erros, portanto, conduziram ao “ajuste fiscal”. O que aconteceu não porque o governo e o PT tenham sido vencidos, mas porque, justamente, ambos venceram. Estamos vivenciando o sucesso de tudo o que significa o governo Dilma. A conjuntura atual não foi causada por crises internacionais ou por alguma emergência endógena de conservadorismo social, que tenha mudado a “correlação de forças”. Foi resultado, isso sim, de uma política deliberada e estratégica bancada pelogoverno Dilma e ideologicamente pela esquerda do PT, que já estava presente nos governos Lula e que se aferrou, quase unidimensionalmente, a partir de 2011.
Uma política estratégica que, apesar das constantes deblaterações antineoliberais vagamente keynesianas, está inteiramente engrenada na lógica do capital mundial. Depois da dissolução pós-fordista do valor e da globalização intensificada da produção, do ponto de vista da expansão do novo regime de acumulação, — como comenta o entrevistado, —  não existe mais qualquer antagonismo real entre estado e mercado, qualquer contradição entre imperialismo dos EUA e da China (ou Rússia), nos termos de uma esquerda embotada da guerra fria. Esses termos, nos anos 70, já eram antiquados.
O drama da conjuntura presente tem sido a capacidade de, apesar de tudo, negar diariamente essa mistificação à esquerda, com a tentativa de repolarizar a sociedade não a partir das lutas, demandas, tensões e crises em que vivemos; mas “desde cima”, a partir de uma polarização artificial entre grupos que aspiram apenas a manter-se em cargos, posições e mandatos, custe o que custar. Não podendo absorver a conflitividade social, o sistema político se fecha ainda mais, blindando-se.
O conflito real se transfere assim a terrenos outros, num caldeirão de indignações que começa a se tornar inestancável e positivamente imprevisível. Com todas suas limitações, as manifestações do 15M e do 12A de 2015 demonstram como, obliterada a possibilidade de relação com as esquerdas, essas indignações passam a se apropriar, elas próprias, dos referentes que encontrarem à disposição, para formular um projeto novo.
Daí não admire a tentativa, às vezes condensada na ideia de um frentismo de esquerda, de resgatar uma intenção residual, apesar de tudo, num projeto ainda depurável do PT  — ou, pelo menos, na cada vez mais acrobática esquerda do PT. O vazio e o subsequente fracasso dessa tentativa têm conduzido, pela falta de agenda positiva, a remoer a chantagem do après moi, le déluge. O que só funciona com uma esquerda esgotada de positividade, de práxis, de ação produtiva, a ponto de ter de alternar entre um looping infindável de denúncias inertes (por vezes autofágicas) e a busca desesperada de um novo redentor, seja ele Haddad, a volta de Lula ou — suma salvação — o próprio monarca do Vaticano.
Mas para quem sofre os efeitos da crise, as águas já estão subindo. E para os movimentos não-governistas e as lutas de junho de 2013, o golpe já aconteceu.

Militares, ciências, Educação Popular.

A pandemia atual expõe a falácia de alguns dogmas sobre a pós modernidade, ela mesma integra a lista dos enunciados falsos de evidências lóg...