Tuesday, July 28, 2015

O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda

O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda

A página de UniNômade, 26-07-2015, ao reproduzir a entrevista de Giuseppi Cocco, sociólogo, concedida à IHU On-Line, no. 468, sob o título "O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda, publica uma introdução de Bruno Cava que reproduzimos a seguir.
Eis o artigo.
Introdução
Quem começou o dilúvio
Com rigor de análise, nesta entrevista Cocco aponta a profunda mistificação à esquerda do debate brasileiro em 2015. Mistificação que não descansa, simplesmente, em falsas ideias vigentes nas cabeças dos esquerdistas, em falsas crenças induzidas por conceitos inadequados. Assenta-se, isso sim, num esgotamento real, sensível, histórico, dos modos de implicação dessa própria esquerda no projeto governista ou do PT (ou da esquerda do PT), esterilizando em consequência qualquer práxis transformadora ou organização de ação, que permitissem contribuir para alternativas e saídas da crise.
Segundo Giuseppe, tal mistificação passa, em primeiro lugar, pela reedição da dicotomia entre capital financeiro e um estado intervencionista, que seria capaz de regulamentar a dinâmica supostamente gananciosa do lucro e caótica da acumulação. Essa dualidade geralmente assume tons morais e se deve, sobretudo, à oposição entre mercado e estado: seria possível produzir uma correlação de força no interior das forças do capital que, com a ideologia certa, pudesse levar à ocupação do estado por uma vontade política capaz de tensionar o grande capital, a favor da renda do trabalho, combatendo assim a especulação e o rentismo.
A gramática antineoliberal dos anos 1990 reaparece, dessa forma, introduzida à força no cenário bastante diverso de 2015, depois das transformações da composição social e de classe dos anos 2000 e das expressões biopolíticas de um novo ciclo de luta, em especial, na expressão máxima das jornadas de junho de 2013. Ignorando as mudanças reais do mundo, a lógica da “correlação de força” se torna simplória, restringindo-se a um braço-de-ferro entre o capital financeiro e o estado mais ou menos dirigido pela esquerda, numa disputa linear de forças que se resolveria, feitas as contas, nos planos macroeconômico e geopolítico.
Dessas premissas, decorre a tão conveniente leitura que Dilma e o PT, no primeiro mandato, tentaram afirmar uma relação melhor entre capital e trabalho, por exemplo, na redução dos juros, mas acabaram vencidos e subjugados 1) pelo inimigo externo dos mercados, 2) pelo inimigo interno do “avanço conservador”. Apesar disso, da derrota que hoje cabe reconhecer com a indicação de um banqueiro para comandar a Fazenda, apesar disso havia e continua havendo uma intenção ideológica que, uma vez retomado o crescimento, resgatará a ação ideológica de esquerda. Com isso, o “ajuste fiscal” — o teor real do slogan eleitoral “muda mais” — é desculpado como imposição, enquanto Dilma apenas aparece como uma governante enfraquecida, refém das circunstâncias, como se superada por uma crise.
O erro é duplo, de premissa e de perspectiva.
Primeiro, erro do que seria uma remobilização produtiva capaz de alterar a configuração de forças, antes de chegar às contas da macroeconomia e da geopolítica. O governo Dilma e o PT apostaram numa visão do que seria “setor produtivo”, segundo o esquema neodesenvolvimentista, apostando na aliança com os empresários comprometidos com o desenvolvimento nacional, isto é, agrobusiness, montadoras, empreiteiras, mineradoras e indústria do Petróleo, nessa lógica para privilegiar campeões nacionais, os “brazilian global players”, ainda que eles sejam… Eike BatistaKátia Abreu, aJBS/Friboi. Como se a Odebrecht fosse patrimônio do povo brasileiro.
Em segundo lugar, erro da perspectiva, ao desconsiderar inteiramente a capacidade criativa e antagonista de uma nova composição de classe, num discurso decadentista em que o PT, em especial a esquerda do PT, se coloca como último bastião das conquistas sociais em meio a um caldo amorfo e conservador das massas. Os preconceitos esquerdistas contra os evangélicos em geral (amiúde identificando avanço conservador com avanço evangélico), assim como a desqualificação de panelaços e outros protestos anticorrupção, são exemplares dessa operação, alimentada diariamente pela blogosfera e a facebukosfera progressistas.
Como Giuseppe explica, parafraseando-o: “sem democracia operária só resta virar playground do capitalismo.” Os dois erros, portanto, conduziram ao “ajuste fiscal”. O que aconteceu não porque o governo e o PT tenham sido vencidos, mas porque, justamente, ambos venceram. Estamos vivenciando o sucesso de tudo o que significa o governo Dilma. A conjuntura atual não foi causada por crises internacionais ou por alguma emergência endógena de conservadorismo social, que tenha mudado a “correlação de forças”. Foi resultado, isso sim, de uma política deliberada e estratégica bancada pelogoverno Dilma e ideologicamente pela esquerda do PT, que já estava presente nos governos Lula e que se aferrou, quase unidimensionalmente, a partir de 2011.
Uma política estratégica que, apesar das constantes deblaterações antineoliberais vagamente keynesianas, está inteiramente engrenada na lógica do capital mundial. Depois da dissolução pós-fordista do valor e da globalização intensificada da produção, do ponto de vista da expansão do novo regime de acumulação, — como comenta o entrevistado, —  não existe mais qualquer antagonismo real entre estado e mercado, qualquer contradição entre imperialismo dos EUA e da China (ou Rússia), nos termos de uma esquerda embotada da guerra fria. Esses termos, nos anos 70, já eram antiquados.
O drama da conjuntura presente tem sido a capacidade de, apesar de tudo, negar diariamente essa mistificação à esquerda, com a tentativa de repolarizar a sociedade não a partir das lutas, demandas, tensões e crises em que vivemos; mas “desde cima”, a partir de uma polarização artificial entre grupos que aspiram apenas a manter-se em cargos, posições e mandatos, custe o que custar. Não podendo absorver a conflitividade social, o sistema político se fecha ainda mais, blindando-se.
O conflito real se transfere assim a terrenos outros, num caldeirão de indignações que começa a se tornar inestancável e positivamente imprevisível. Com todas suas limitações, as manifestações do 15M e do 12A de 2015 demonstram como, obliterada a possibilidade de relação com as esquerdas, essas indignações passam a se apropriar, elas próprias, dos referentes que encontrarem à disposição, para formular um projeto novo.
Daí não admire a tentativa, às vezes condensada na ideia de um frentismo de esquerda, de resgatar uma intenção residual, apesar de tudo, num projeto ainda depurável do PT  — ou, pelo menos, na cada vez mais acrobática esquerda do PT. O vazio e o subsequente fracasso dessa tentativa têm conduzido, pela falta de agenda positiva, a remoer a chantagem do après moi, le déluge. O que só funciona com uma esquerda esgotada de positividade, de práxis, de ação produtiva, a ponto de ter de alternar entre um looping infindável de denúncias inertes (por vezes autofágicas) e a busca desesperada de um novo redentor, seja ele Haddad, a volta de Lula ou — suma salvação — o próprio monarca do Vaticano.
Mas para quem sofre os efeitos da crise, as águas já estão subindo. E para os movimentos não-governistas e as lutas de junho de 2013, o golpe já aconteceu.

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