A funesta Ideologia da Tesoura
"Pagaremos
mais impostos, teremos o acesso aos serviços públicos mais restringido,
perderemos salário real etc. E consentiremos. Aderiremos à 'ideologia da tesoura', deixando de vê-la como a
ideologia dos 'de cima', ou seja, dos que criam a crise e lucram com
ela", adverte Alexandre Pilati, professor de
literatura brasileira da UnB, em artigo publicado por Outras Palavras,
15-09-2015.
Eis o artigo.
Não sem alguma
facilidade, os setores conservadores que comandam a sociedade
global, através de dolente mantra numerológico, vão conseguindo fazer colar nas
cabeças dos setores médios brasileiros a ideia de que a crise econômica atual só se vencerá com uma bela
e grande tesoura, que ataque os gastos “escabrosos” do
governo federal.
Mais uma vez
trata-se da boa e velha fabricação de consenso em torno de algo que, a partir
de uma constatação real, sustenta-se quase que miticamente como única saída,
cujo endereço de classe, entretanto, como bem sabemos, é bastante definido. É
mirar e ver: nas últimas semanas, a fabricação de consenso em torno da tesoura
como saída únicae necessária para a crise econômica passa-se à
fabricação de consentimento. “Nada de política; a pura matemática nos vai tirar
do abismo.” Será?
Os que já estão
lascados por uma crise que não foi por eles inventada, aderem paulatinamente ao
consenso de que a saída única é o sacrifício “momentâneo” de algumas conquistas (elevação real do salário mínimo, ampliação
do alcance de serviços públicos essenciais, participação maior no mercado de
trabalho, superação da miséria, conquista da casa própria…). Depois consentirão
que a tal tesoura, a inefável tesoura da cartilha neoliberal,
brandida na terra da Casa Grande por um coroinha do Grande Capital, corte o que
os “de baixo” têm “de sobra”.
Pagaremos mais
impostos, teremos o acesso aos serviços públicos mais restringido, perderemos
salário real etc. E consentiremos. Aderiremos à “ideologia da tesoura”,
deixando de vê-la como a ideologia dos “de cima”, ou seja, dos que criam a
crise e lucram com ela. Veremos a “ideologia da tesoura” como a mística saída,
a racional saída, a matemática (i.e.: mística+racional) saída para a crise. Por
aí penetra surdamente a lenga-lenga do Estado mínimo e do arrocho sobre
os trabalhadores, de mãos dadas com o fantasma do desemprego e a
assombração das perdas salariais, que podem ser momentâneas ou perenes,
dependendo da contrição que empreguemos ao ajoelhar diante do Capitalque
nos quer esmagar; o Capital com seus donos, que podem esperar mais um
pouquinho, dependendo de nosso bom comportamento, de nossos trejeitos de
lacaios.
E nós nos iludimos,
seduzidos pelos senhores respeitáveis de negro terno imoral, pelos moços de rostos
inteligentes e profundamente estúpidos que aparecem no infernal noticiário da
noite. A primeira coisa que a tesoura corta é nossa cabeça, nossa capacidade de
pensar. O medo, fabricado pela fabricação de consenso, fabrica também oconsentimento.
E nós aceitamos. Aceitamos a “ideologia da tesoura” como nossa salvação, embora
ela seja um prenúncio de nossa rendição a uma vida mais restrita materialmente.
Quero lembrar aqui,
ainda que medianamente extenso, um belo parágrafo de Terry Eagleton sobre a ideologia [1]:
“A visão racionalista de ideologias como sistemas de crenças
conscientes, bem articulados, é claramente inadequada: deixa escapar dimensões
afetivas, inconscientes, míticas ou simbólicas da ideologia, a maneira como ela
constitui as relações vividas, aparentemente espontâneas do sujeito com uma
estrutura de poder e a provê a cor invisível da própria vida cotidiana. Mas se
ideologia, nesse sentido, é discurso primariamente performativo, retórico,
pseudoproposicional, isso não significa que seja desprovida de um importante
conteúdo proposicional – ou que as proposições que faz, inclusive as morais e
normativas, não possam ser avaliadas quanto a sua verdade ou falsidade. Muito
do que as ideologias dizem é verdadeiro e seria ineficaz se não o fosse, mas as
ideologias também têm suas proposições que são evidentemente falsas, e isso não
tanto por causa de alguma qualidade inerentemente falsa mas por causa das
distorções a que são submetidas nas suas tentativas de ratificar e legitimar
sistemas políticos injustos, opressivos.”
Eagleton chama as ideologias, neste mesmo trabalho, de “crenças letais”.
Esta é a condição da letal “ideologia da tesoura”. Vencer a crise, segundo esta
ideologia, quer dizer aplicar um remédio neoliberal, ou seja, que não atingirá
jamais as estruturas que causam a crise. Então, se é isto que propala a
“ideologia da tesoura”, fica certo que ela é uma “crença letal”, uma crença que
não dizimará os seus sacerdotes, mas fará ficar à míngua os seus crentes mais
frágeis. Isto pois a “ideologia da tesoura” não irá considerar a taxação das grandes fortunas, o corte significativo
dos juros, a cobrança impiedosa dos grandes sonegadores,
a revisão da necessidade de se manterem tão altas reservas, os penduricalhos
chiques da ostentação do poder, a auditoria a sério da dívida pública, entre tantas outras coisas.
Como se explicarão
cortes em “despesas obrigatórias” como educação, saúde ou programas sociais?
Como será possível politizar esse debate para evidenciar que, nos últimos anos,
o que o povo quis com mais força foram maisdireitos sociais, mais
atuação do Estado na prestação de qualidade de serviços públicos? O povo, está
claro, não quer menos Estado, ele que mais Estado e com mais eficiência.
Alguém, contudo,
terá de pagar por isso. A luta política de hoje devia caminhar
para que os que sempre levam a melhor paguem mais pela manutenção da melhoria
de vida progressiva daqueles que têm menos. Isso não é uma utopia. É apenas a
simples negação política, consciente, da “ideologia da tesoura”. É o desejo de
que a Política protagonize o enredo da atual crise e que a economia sirva para
preencher com mais vida a vida de quem mais necessita.
A economia é uma
ciência cujos atores centrais são as gentes. Os números, portanto, devem estar
a serviço das gentes. As gentes: essas estranhas massas moldadas a sonho,
desejo, sorriso e lutas. Mas, no cenário em que vivemos, de iminente vitória
cabal da “ideologia da tesoura”, tem nos esbofeteado duramente a
sugestão de que muitas vidas se acinzentarão, para sustentar o fetichismo frio
dos números. Os números: esses estranhos animais sem ânima, que dão sustentação
performática aos golpes seguros e escorchantes da “ideologia da tesoura”.
Nota:
[1] EAGLETON, Terry. Ideologia. São
Paulo: Boitempo/Unesp: 1997.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/546805-a-funesta-ideologia-da-tesoura
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