Saturday, September 24, 2016

As "últimas conversas" de Ratzinger: do "gosto pela contradição" ao "prazer do encontro". Artigo de Andrea Grillo

"A aparição de Francisco, restituindo ao magistério a sua autoridade eficaz – autoridade para afirmar em vez de contradizer – começou a superar a contradição que paralisa e reabriu o caminho para a vida vivida, para a saída arriscada e para o cuidado sem medida."

A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e doInstituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.

O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 17-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Não há dúvida de que, no livro publicado no dia 9 de setembro, podem ser identificados pelo menos dois percursos diferentes. Por um lado, uma série de "retratações", com as quais Joseph Ratzinger – o "terceiro" Ratzinger – volta ao estilo do início da carreira teológica, antes de assumir qualquer tipo de "ministério pastoral": portanto, Massimo Faggioli tem toda a razão ao concluir o seu comentário sobre o livro com estas palavras certas:

"Bento não fala nada sobre os Sínodos dos Bispos de 2014 e de 2015, ou sobre a exortação apostólica Amoris laetitia. Aqueles que esperavam uma intervenção do ex-papa sobre o debate sobre a família e os divorciados recasados vão ficar desapontados. Se você é um daqueles tradicionalistas que levam em consideração a ‘opção-cisma’ (formalmente ou em silêncio), não olhe para esse livro para buscar o apoio de Bento XVI. Ele se descreve agora como um rebelde que sempre gostou da contradição (‘die Lust am Widerspruch’), e agora ele se contradisse e se distanciou de alguns daqueles que ele nomeou e promoveu durante os seus 31 anos em Roma antes de se tornar ‘emérito’" (artigo publicado por Commonweal e reproduzido por IHU On-Line).

É verdade: no livro, Joseph Ratzinger se distanciou de alguns daqueles que, nos últimos 30 anos, ele tinha apoiado e promovido em Roma, antes de se tornar "emérito".

Mas, embora levando em conta essa condição favorável de "emérito" – liberto de toda responsabilidade pastoral e pontifícia direta – é possível detectar no livro outro aspecto de extremo interesse, útil para compreender melhor as razões que o levaram a assumir posições no campo litúrgico das quais a Igreja objetivamente continua "sofrendo", precisamente por causa da distância entre as suas "intenções" – que aqui encontramos abertamente repropostas – e os efeitos indesejados e não considerados. 

Com efeito, nas páginas 186-190, encontramos repropostas, com substancial continuidade com o passado, as "razões" que – na opinião de Joseph Ratzinger – justificaram o motu proprio Summorum pontificum de 2007. 

Gostaria de apresentar aqui essas razões, com as palavras com que hoje são repetidas, junto com as suas fraquezas intrínsecas:

a) "O que antes era sagrado não pode se tornar, de uma hora para a outra, errado" (p. 190)

Esse assunto, que está bem presente desde o início como "motivação-chave" doSummorum pontificum, parece ser de uma fraqueza desarmante. Era "sagrado" rezar pelos "pérfidos judeus"? Era "sagrado" que "só o padre celebrasse"? Era "sagrado" repetir todos os dias úteis a mesma liturgia da palavra? Era "sagrado" rezar o terço durante a missa? Era "sagrado" mover a comunhão para depois do fim da missa? 

Eu me pergunto: por que alguém deveria ter hoje o direito de "ficar parado" nessa forma do "sagrado"? Aqui, o "prazer da contradição" se identifica com a "obstinação pelo mesmo". Obstinação objetivamente cega e visceral, já que pode olhar para toda mudança litúrgica como para uma "catástrofe irreparável". Certamente, Ratzinger nunca desmente a Reforma, mas a compreende e a admite apenas como restos "sem efeito", salvaguardando a "substância" da liturgia.

b) "É importante que se comece a ver a partir de dentro o que é a liturgia" (p. 190)

Eis um segundo aspecto a se considerar. Para Ratzinger, também como "emérito", a liturgia deve ser captada rigorosamente "a partir de dentro". Mas aqui surge um segundo problema decisivo. A liturgia não é um conceito ou uma ideia: ela é feita de tal modo que "dentro" e "fora" não podem ser isolados. Apenas se eu puder prescindir do "fora", se eu ousar reduzir a liturgia apenas a ponto interior é que eu poderei me iludir que a "continuidade" se mostra indiferente às mutações externas. E então poderei defender a "irrelevância" da reforma em relação à "substância" da liturgia. Só a esse preço eu posso chegar a afirmar - com grande gosto pela contradição – a identidade do diferente. E a pedir que a "identidade interna do outro deve permanecer visível" (p. 189).

c) "Agora, não há uma outra missa. São duas formas diferentes do único e mesmo rito" (p. 189)

Mas não tinha sido justamente Joseph Ratzinger que, no início dos anos 1980, disse que a maior ideia elaborada pela teologia litúrgica do século XX tinha sido precisamente a mudança do conceito de forma? Se isso for verdade, como é possível que haja "uma só missa" em formas tão diferentes? Se a diferença de formas é bem compreendida no devir da história, como é possível que possa estar contemporaneamente em vigor uma e a outra, e que cada padre possa, na sua singularidade, optar por uma ou por outra de modo absolutamente arbitrário, ao mesmo enquanto vive a relação singular com a liturgia? Nesse "direito clerical" à indiferença pela forma, esconde-se a contradição mais arriscada e também a obstinação mais "sedutora".

d) "A velha liturgia da Sexta-Feira Santa não é realmente aceitável. Eu me admiro que não se tenha feito nada antes para mudá-la" (p. 186)

O gosto pela contradição leva também a uma reconstrução histórica absolutamente paradoxal. Com efeito, ao ler o relato com quem Joseph Ratzinger apresenta o caso da "oração pelos judeus", ficamos literalmente sem palavras. A distorção dos fatos é realmente clamorosa. Nada se diz nada sobre o fato central: ou seja, que foi o motu proprio Summorum pontificum que tornou imediatamente utilizável, por todos os padres, a velha fórmula da "oratio pro conversione judaeorum". Ninguém tinha pensado nisso antes! Nem mesmo o papa da época! Que diz não ter "nada" contra a nova fórmula de 1970, mas confessa ter se dedicado pessoalmente para formular uma diferente, que não fosse mais a de 1962, mas que também fosse diferente da de 1970! 

Em 2008, portanto, ele dedicou tempo e talento para introduzir uma fórmula "intermediária" entre a de 1962 e a de 1970! E esse ato arriscado teria sido criticado apenas "por má-fé", apenas para "destruir Bento XVI"? O papa emérito, ignorando esses fatos que pesam como rochas, atribui para si mesmo o mérito de ter substituído a velha fórmula "com uma oração melhor para o grupo restrito daqueles que utilizam o missal antigo". Na realidade, pode-se afirmar exatamente o contrário: que, com o motu proprio de 2007, um certo número de católicos pode se considerar plenamente autorizado a se abster de rezar de acordo com a fórmula comum, renunciando perigosamente à plenitude do respeito e do reconhecimento entre "irmãos mais novos e mais velhos". A falta de consideração dessa perspectiva é pastoralmente um pequeno grande drama de insensibilidade e de autorreferencialidade.

e) "Na Alemanha, algumas pessoas tentam me destruir desde sempre" (p. 187)

Para dizer a verdade, é preciso acrescentar um aspecto curioso: todo esse "drama" seria apenas fruto de uma "montagem dos teólogos alemães que não são meus amigos". É totalmente singular que esse assunto delicado, marcado por uma leitura a-histórica e puramente interior da tradição litúrgica – como se 50 anos depois da reforma se pudesse assegurar continuidade com um simples motu proprio – possa ser reconstruído, em substância, como uma questão de "inimizade pessoal". 

A admissão de "falta de relações" – que Bento confessa galantemente no início do livro – aparece aqui como uma conta muito alta que a tradição litúrgica teve que pagar e que continua pagando ainda hoje, sem que esses motivos tenham mais qualquer fundamento institucional, dada a condição de emérito.

Em conclusão, dentro de um texto que contém também afirmações surpreendentes, devemos reconhecer com honestidade que o "tema litúrgico" está quase inalterado. E que, sobre esse ponto, a "teoria" do professor Ratzinger se afastou rapidamente da realidade e continua a fazê-lo, mesmo depois do fim das suas responsabilidades diretas. 

No entanto, a repetição de um argumento fraco, mesmo depois do fim do pontificado que o expressou e o utilizou, certamente não o torna mais forte. A operação de "liberalização" do "rito antigo" não só não é justificada pela "substância" da liturgia, ou por uma liturgia compreendida a partir "de dentro", mas é influenciada fortemente por opções subjetivas e idiossincrasias pessoais, que pesaram e complicaram a gestão concreta da liturgia eclesial.

"Die Lust am Widerspruch", a "vontade de contradizer", teve um preço alto demais para a vida litúrgica eclesial. Deve-se remediar isso hoje sem demora, porque o "prazer da contradição" gerou, apesar das melhores intenções, nos últimos 30 anos, "a negação do magistério". E isso não acontece apenas em âmbito litúrgico, mas também nas decisões sobre o ministério masculino e feminino, sobre o modo de considerar e de implementar oConcílio Vaticano II e o seu significado, sobre as prioridades da identidade eclesial, sobre a relação da Igreja com o mundo e sobre o diálogo ecumênico e inter-religioso. 

Essa tensão não resolvida, essa fragilidade de argumentações ao lado de uma certa prepotência das determinações, parece desenhada, no último livro, com um perfil muito claro, em um misto de rendição desarmada e de determinação irredutível e obstinada.

Quase como a figura dessa abordagem não resolvida parece ser a última palavra que fecha essa parte do livro, quando, diante das dificuldades de recepção do motu proprio,Joseph Ratzinger reitera, com força, a "impotência papal", negando por duas vezes que o papa possa realmente incidir na realidade litúrgica: "Não é assim", "Certamente, é impossível" (p. 190).

Talvez, o enrijecimento maior, na história biográfica de Joseph Ratzinger, se deve precisamente a essa "impotência" confessada. O máximo da sua "potência" – primeiro como prefeito e depois como papa – se traduziu em uma substancial impotência do magistério. O seu magistério se tornou gradualmente, mas irrevogavelmente, contradição do magistério, quase gosto e vontade de uma ausência de magistério.

Talvez, desse modo, o "gosto da contradição" acabou bloqueando substancialmente o magistério eclesial por 30 longos anos. A máxima afirmação de poder foi, talvez, a de "não ter poder"? Ou, melhor: na negação de todo espaço de movimento para a autoridade da Igreja, nos reduzimos cada vez mais a uma versão autorreferencial da autoridade. Que se afirmava apenas na negação de toda possível novidade.

A aparição de Francisco, restituindo ao magistério a sua autoridade eficaz – autoridade para afirmar em vez de contradizer – começou a superar a contradição que paralisa e reabriu o caminho para a vida vivida, para a saída arriscada e para o cuidado sem medida.

Talvez, esse seja o motivo central e o ponto decisivo diante do qual Bento também – justamente ele e sem fingimentos – pôde confessar tão abertamente – e quase despudoradamente – a sua admiração por um Francisco não apenas como papa "ativo", mas também pelo seu lado "reflexivo", no qual se pode reconhecer que "a Igreja está em movimento, é dinâmica, aberta, tendo diante de si perspectivas de novos desenvolvimentos" (p. 43). Um Francisco que faz prevalecer sobre o negativo da contradição o positivo da ação e da afirmação: em relação ao "gosto de contradizer" – que, evidentemente, não falta nem mesmo a ele – ele dá o primado ao "prazer de sair" e ao "desejo de encontrar".

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