Sunday, December 11, 2016

A irrelevância do direito


A irrelevância do direito
A irrelevância que a argumentação de crime de responsabilidade teve durante o processo de impeachment revelou que a nova ordem se impõe sob a irrelevância do direito, das instituições e da Constituição
por Marta Rodriguez de Assis Machado
O impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff seguiu a forma e o rito previstos na Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal foi acionado para preencher as lacunas da lei e precisar o procedimento a ser cumprido. Ré e advogado de defesa poderiam fazer uso da tribuna em sua integralidade. A pressa em adiantar o processo não poderia esbarrar no exercício de defesa. A garantia desta última seria a prova mais cabal da legitimidade do processo. Isso foi repetido ad nauseam – como gostam os juristas de falar – pelos advogados acusadores e pelos parlamentares juízes da causa. Não se poderia falar em golpe quando tudo foi feito por meio do processo constitucionalmente previsto, referendado pela instância máxima do Judiciário, que tem por função zelar pela Constituição.
Só que não. O direito de defesa significa não somente ter a possibilidade de falar, contestar as acusações e produzir prova em contrário. O direito de defesa em sua integridade exige que a argumentação da defesa seja levada em conta pelos juízes. Os argumentos e as provas produzidas pela defesa devem ser ponderados, juntamente com todos os demais, para formar a convicção dos julgadores. Se nada que se possa falar ou demonstrar durante um julgamento tem a capacidade de influir em seu resultado, não há direito de defesa real. O tempo que a defesa gastará falando e inquirindo testemunhas não se traduzirá em observância de seu direito constitucional de influenciar na decisão. Sua participação no processo será meramente ritual. 
A característica mais profunda do funcionamento do direito em uma democracia é o princípio da incerteza. Quando uma violação de direito é levada ao conhecimento de um juiz, isso se dá sob a premissa de que os fundamentos da demanda poderão ser reconhecidos. Quando alguém vai a juízo produzir defesa, isso se dá sob a premissa de que o julgador está aberto a ponderar todos os interesses em jogo e chegar a uma decisão que é incerta para todos. A incerteza é premissa da imparcialidade dos juízes. O direito certo é o direito autoritário, que já escolheu um lado de antemão. 
Em todo o desenrolar do processo de impeachment se sabia que os parlamentares, juízes do caso, não estavam ali para formar sua convicção. Naturalmente, o plenário ficou às moscas quando se inquiriram testemunhas de defesa. O resultado daquele longo ritual já era certo. Um julgamento com sentença definida de antemão deveria ser um escândalo. Talvez a convivência com um Judiciário tendencioso tenha produzido esse tipo de insensibilidade. De fato, há de se fazer uma crítica às inclinações elitistas dos operadores do sistema de justiça. Condenações em massa de réus pretos e pobres, que são pouco ou quase nada ouvidos. A predileção em intervir para proteger o patrimônio. Os concursos públicos, tal como estão conformados, fazem um bom trabalho em recrutar defensores do status quo, mas – ainda – não foram capazes de eliminar completamente as divergências. Nos últimos anos, o direito foi capaz de produzir decisões inovadoras, que desafiaram a ordem das coisas – o casamento homossexual, a política de cotas na universidade, o reconhecimento de que as manifestações a favor da descriminalização do uso de drogas poderiam acontecer sem significar apologia ao crime, a garantia do direito à saúde do cidadão em detrimento dos interesses econômicos dos planos, o juiz que soltou manifestantes e reconheceu o arbítrio policial. No caso Pinheirinho, que resultou no despejo brutal de 9 mil famílias para resguardar o direito de uma massa falida, houve juízes que ao longo do processo disputaram a decisão a favor do direito de moradia das famílias. Essas decisões não são majoritárias, mas existem. O Judiciário vem sendo uma arena de disputa pelos movimentos sociais, com alguns ganhos. A possibilidade de ainda nos surpreendermos com a jurisdição é a prova de que o jogo está apertado no campo do direito, mas ele não é totalitário. Ainda é possível disputar o direito. Mas, quando a incerteza desaparece, desaparece o direito. Ele vira apenas retórica e ritual, a justificar o uso da força.
Voltando ao impeachment, a distinção entre mera retórica e argumentação jurídica é aqui mais uma vez importante na discussão sobre a legitimidade da decisão. A Constituição submete o juízo sobre a retirada de presidente à verificação de crime de responsabilidade. A excepcionalidade da decisão justifica a exigência – constitucional – de verificação do pressuposto ali previsto. Todos sabem, contudo, que a presidenta foi retirada de seu cargo não por ter cometido crime de responsabilidade, mas por razões das mais variadas: conjunto da obra, estelionato político, corrupção, Operação Lava Jato (mesmo não tendo sido envolvida nas acusações de corrupção e mesmo que nada disso estivesse no pedido do impedimento). Não é preciso demonstrar que as tais pedaladas não foram o fundamento da decisão. A maioria dos parlamentares-juízes nem sequer se deu ao trabalho de incorporar a retórica jurídica em suas fundamentações de voto. Ao final decidiram que, como não houve o crime, afastariam a presidenta, mas sem aplicar a sanção da inelegibilidade. As únicas figuras que estavam ali fazendo a representação do direito – num exercício de retórica malfeita, cinismo e figuração – eram os advogados. Vale lembrar que figuras semelhantes do mundo jurídico durante a ditadura civil-militar se prestaram a esse papel de emprestar forma jurídica a atos arbitrários. 
Dois argumentos foram levantados na esfera pública para defender que isso não seria a rigor um problema a macular o procedimento. O primeiro diz que a definição de crime de responsabilidade seria muito ampla e, diante da indeterminação da lei, tudo cabe. O segundo diz que o julgamento do impeachment é político e, portanto, a presidenta estaria sendo sancionada por sua pouca habilidade em construir maioria parlamentar. Ambas as posições parecem ignorar (ou desprezar) o papel do direito, da argumentação jurídica e da Constituição. 
O direito convive há muito tempo com conceitos abertos e indeterminados. Uma função importante dos intérpretes do direito é justamente precisar esses conceitos. A lei determinada na verdade não existe, mas de fato alguns conceitos são mais abertos que outros, dão maior margem para criação por parte do aplicador da lei. Mas nem por isso a decisão é aleatória. A interpretação da categoria aberta deverá ser fundamentada e deve fazer sentido dentro do direito posto. O tipo de juízo que o julgador deve fazer é o do “inquérito”, em sentido amplo, como usado por Foucault em A verdade e as formas jurídicas: um modelo de produção da verdade. Essa verdade, claro, vem entre aspas, mas a ideia aqui é que a decisão se dá por meio da formação da convicção sobre um ato passado, reconstituindo-o por meio de evidências e testemunhos. Quando a decisão jurídica toma essa forma, na história do Ocidente, ela não é mais o resultado de um duelo, o direito não é apenas uma forma regulamentada de fazer a guerra. É “a possibilidade de opor uma verdade (sem poder) a um poder (sem verdade)”.
Assim, se a Constituição não definiu como certo o conteúdo do crime de responsabilidade, ao menos uma coisa estava definida em seus limites: a decisão deveria formalmente ser a da convicção formada. O raciocínio que deveria nortear a decisão de afastar a presidenta teria de ser o da existência ou não de crime de responsabilidade, ainda que essa definição seja incerta e a Constituição tenha dado poder para que os aplicadores completassem seu sentido. Há espaço para interpretação, mas essa decisão deveria se sustentar dentro da lógica do convencimento, ainda que esse convencimento não seja técnico, como no caso do Tribunal do Júri.
A defesa do caráter político do procedimento parece pretender relevar o vale-tudo das decisões. Não se trataria realmente de investigar e provar a ocorrência de crime de responsabilidade, como exige a Constituição, mas apenas de obter maioria de votos. Com o perdão dos realistas políticos, isso é uma falácia, a menos para aqueles que ainda acham que a ordem constitucional importa. O fato de os julgadores serem parlamentares, e não juízes togados, não muda a natureza da decisão: trata-se de interpretar e aplicar uma regra constitucional. Segundo a Constituição, esse não é um juízo de oportunidade política, de mera formação de maioria. É um juízo de convencimento sobre o crime. A ética que deveria presidir a decisão não é da responsabilidade, é a da convicção. É claro que isso poderia ser diferente, como em outros sistemas, mas aí deveríamos repactuar, com percursos mais democráticos que esse.
A irrelevância que a argumentação de crime de responsabilidade teve durante o processo de impeachment revelou que a nova ordem se impõe sob a irrelevância do direito, das instituições e da Constituição. É esse o papel – epifenomênico – do direito nos Estados autoritários. 
Marta Rodriguez de Assis Machado
Marta Rodriguez de Assis Machado é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Cebrap.

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