Monday, December 19, 2016

Tenentismo e Procuradorismo e o Partido do Estado

Tenentismo e Procuradorismo e o Partido do Estado
por Aldo Fornazieri
Continuando um artigo anterior (A Lava Jato e a rebelião do procuradorismo), é certo dizer que as rebeliões tenentistas da década de 1920 - Revolta dos 18 do Forte de Copacabana (1922), Revolução de 1924, Coluna de Manaus e Coluna Prestes - eram sintomas de uma crise maior: a crise das oligarquias, a crise da República Velha. O desfecho daquela crise foi a Revolução de 1930 e o fim da política do Café com Leite.
De início, os tenentes lutaram pela dignidade e pela honra das Forças Armadas, ofendidas pelos políticos. Logo depois, dirigiram-se contra o governo central e contra governos locais, particularmente contra o governo de São Paulo. A vitória de Arthur Bernardes em 1922, por fraude eleitoral, derrotando Nilo Peçanha, apoiado pelos militares, amplia o descontentamento e faz eclodir a rebelião do Forte. Derrotados neste episódio, logo depois, os tenentes passam a falar em nome de "interesses nacionais". Viam a República Velha dominada por oligarquias, desmoralizada pelas fraudes eleitorais, tomada pela corrupção administrativa e o povo explorado e abandonado à sua própria sorte.
O tenentismo foi audacioso na ação e moderado na demanda. Os pontos programáticos que emergem dos seus manifestos, declarações de líderes e compilações de estudiosos podem ser situados em dois vértices: 1) Plano político: Moralização e republicanização da República, justiça eleitoral, fim das oligarquias e voto secreto; 2) Plano econômico e social: legislação trabalhista e social, educação obrigatória, política industrial nacional e defesa dos interesses nacionais. A corrupção administrativa, a fraude eleitoral, a liberdade de impressa, a limitação do poder Executivo, autonomia e ampliação do Poder Judiciário e o fim do sistema político vigente eram pontos centrais, mobilizadores dos pronunciamentos armados.
Como notam Hélio Jaguaribe e Francisco Iglesias, a década de 1920 vai representar também o aparecimento da luta ideológica. No nível do Estado a política continua personalista, corrupta e fisiológica, mas passa a ser confrontada por pensamentos e ideias ideológicos que emergem de grupos sociais ou se desenvolvem no próprio Estado, como é o caso dos tenentes e de outros setores. De qualquer forma, o tenentismo irá produzir consequências políticas importantes em três momentos posteriores: na Revolução de 1930, aliando-se a Vargas e à Aliança Liberal; à deposição de Vargas em 1945; e, finalmente, o Golpe Militar de 1964  fermentou em ideias tenentistas.
As razões do procuradorismo
O procuradorismo surge num contexto bastante diverso daquele do tenentismo. Se lá o regime oligárquico era ignominioso contra o povo e a situação social era deplorável, o procuradorismo se apresenta exatamente após um caso bem sucedido de inclusão social, recuperação e distribuição de renda e redução da pobreza, que se expressou nos dois mandatos de Lula e no primeiro mandato de Dilma. Mas ele surge também no exato momento em que o modelo petista apresenta fortes sinais de esgotamento e começa a sofrer contestação nas ruas, cujo momento nascente é 2013.
Então, quais seriam as razões do procuradorismo? Ao contrário do tenentismo, os problemas sociais, a questão da dominação das elites, a questão nacional e os rumos estratégicos do país não motivam a rebelião dos procuradores, juízes e policiais federais.  O procuradorismo é motivado pela ideologia moralizante de coloração conservadora, típica das classes médias, e por razões políticas relacionadas a forma corrupta generalizada de financiamento das campanhas de quase todos os partidos, pelo alto custo do presidencialismo de coalizão (mensalões etc.), pela mercantillização do Congresso Nacional que se vende a empreiteiras e a outros setores para aprovar leis que beneficiam grupos privados. Parlamentares compram mandados nas eleições via financiadores e vendem leis e favores aos seus benfeitores.
O procuradorismo se forjou em várias operações de combate à corrupção política e administrativa, destacando-se o escândalo do Banestado, a operação Satiagraha, a operação Castelo de Areia, os Mensalões tucano, petista e do DEM e, finalmente, a Lava Jato. O que se viu nessas operações foi o enorme tamanho da corrupção, articulada em quatro tempos: a) partidos financiados ilegalmente por empresas, particularmente empreiteiras; b) concessão de benefícios lesivos aos interesse público a empreiteiras e outras empresas; c) distribuição de propinas, não só para campanhas, mas para manter o apoio de parlamentares e partidos a governos de plantão; d) compra de leis no Congresso para beneficiar empresas privadas, numa prática de inominável violência contra a soberania popular e a representação política. Financiamento de campanhas, compra de apoios e enriquecimento pessoal foram se misturando de forma explosiva.
A disfuncionalidade do sistema político e partidário, o alto custo da democracia e a imoralidade sistêmica desenvolveram a percepção individual e coletiva entre procuradores, juízes e policiais federais de que era preciso reagir ao estado de coisas vigente. O desinteresse e a apatia do Congresso em promover  reformas do sistema político estimularam o ativismo político do Judiciário de forma acentuada.
 Na medida em que a luta política foi se tornando cada vez mais também uma luta pelo controle de um imenso estoque de propinas, esquemas de corrupção e disponibilidade de cargos, recursos e verbas, o embate foi se afunilando cada vez mais entre dois campos,  liderados pelo PT e pelo PSDB. No meio de ambos, uma massa crescente de partidos, desfibrados de ideologias e programas, dispostos a servir a um e a outro campo, conforme o pagamento.
A polarização política, somada ao não interesse de  reformar o sistema, potencializou a judicialização da política. Desde os governos FHC, passando pelos governos petistas, viu-se o STF e o Judiciário em geral crescentemente demandados pelos partidos, pela sociedade civil e por instâncias governamentais para resolver conflitos. Com isso, o STF passou a ter um papel legisferante aumentado e, num jogo de omissões e intervenções, passou a integrar a rebelião dos procuradores. A forma como foi julgado o mensalão petista, as várias disciplinações eleitorais, a proibição do financiamento privado de campanhas, etc., foram ações que se colocaram em linha com a ideia dos procuradores de forçar uma mudança do sistema.
O Partido do Estado
O esfacelamento do sistema político-partidário adicionado à crise econômica criaram aquilo que Gramsci chamava de crise de interregno: as elites não conseguem mais governar e as forças da mudança não têm organização e capacidade para imprimir uma alternativa e promover as transformações. Diante desse impasse, agravado pela crise moral, pelas investigações da Lava Jato e pelas mobilizações das ruas, surgiu aquilo que podemos chamar do Partido do Estado. Esse Partido, composto por procuradores, juízes e policiais federais, orienta-se por uma forte ação moralizadora e quer salvaguardar o Estado como o mediador universal dos conflitos. Quer purgar o Estado dos males da corrupção, vista não só como causa da ineficiência pública, mas também como desorganizadora da economia. A ideologia moralizante pode ser percebida nos despachos e entrevistas de Moro, nas declarações de procuradores, juízes e federais.
A rigor, é possível dizer que, em tese, nas crises de interregno, é forte a tendência de aparecimento de Partidos do Estado. Eles surgem para dar uma solução de continuidade às crises políticas. Os golpes militares são golpes de Partido do Estado que reage contra as disfuncinalidades do sistema político colapsado. O Partido do Estado volta suas ações contra quem detém o poder central. Tendo em vista que, hoje, o Partido do Estado não é fundamentalmente fardado, ele usa outros expedientes, legais e excepcionais, para se impor. No passado recente a sua forma visível era a farda. Hoje é a toga. Pode ser uma combinação de ambas.
Num primeiro momento o Partido do Estado se voltou contra o governo do PT e colaborou para a promoção do golpe. O PT havia ajudado a promover a dissolução das ideologias em crise. No governo, o PT tornou-se uma espécie de partido da conciliação geral, onde quase todos os demais partidos cabiam. Aqueles que não cabiam - o PSDB e seus aliados - não cabiam por motivos ideológicos, mas pela  razão e relação amigo/inimigo. O PSDB se move pela mesma lógica. A dissolução ideológica retirou as trancas e os ferrolhos morais do PT e, como bem percebeu o próprio Lula, o partido se tornou igual aos demais.
O Partido do Estado agora volta-se contra o PMDB. Os aliados de ontem são os inimigos de hoje. O procuradorismo quer afastar os corruptos do governo. O governo peemedebista, secundado pelo PSDB, quer acabar com a Lava Jato. Se as investigações não forem paralisadas, o PSDB e outros partidos também passarão a ser alvos da fúria moralizante.
O procuradorismo, expressão do Partido do Estado, é uma espécie de bonapartismo sem um Luis Napoleão Bonaparte no comando de um governo. Sergio Moro e Deltan Dallagnol são de  Bonapartes simbólicos. Chegam diretamente às massas através das mídias. As classes médias, em particular e os manifestantes nas ruas outorgaram-lhe o título de imperadores da cruzada moral. A questão a saber é a seguinte: tal como o tenentismo, o procuradorismo se ligará à atividade político-partidária? Esta crise, é preciso frisar, não é de curta duração, pois é um sistema todo que precisa ser reformado. A rebelião do procuradorismo  produziu  e produzirá muitos efeitos políticos. Se a crise continuar a destroçar partidos e lideranças, representantes do Partido do Estado se verão na contingência de se transformarem em alternativa política.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política.

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