Sunday, May 27, 2018

Carta para Maria Augusta Ramos, por Jean Pierre Chauvin

Prezada Maria Augusta Ramos,

Você não me conhece, mas me atrevo a lhe dirigir esta missiva.



Pesquiso e leciono literatura e história luso-brasileira. Emprego verbos porventura pomposos (“pesquisar”, em lugar de “estudar”; “lecionar” a “educar”) não para enaltecer ambos os ofícios, mas relembrar que neste território – capitaneado pelos Estados Unidos da América, com a bênção de youtubers e pseudofilósofos que gourmetizaram o senso comum – o professor fala de um lugar frequentemente combatido não só pelos ilegítimos alçados ao poder, mas também por uma parcela de seus pares de sala de aula.
Ninguém vê problema em um Mr. Toga empregar o Juridiquês recamado de latinório e conceitos da jurisprudênca, fantasiado com capa, anel de rubi, e arbitrar incertas leis (caudatárias do estatuto colonial; depois, imperial; finalmente, pseudo republicano), favorecendo uns e obliterando a palavra de outros, na neocolônia em que a “lei” nunca se estendeu a todos.
Confundir terno alinhado com imagem de respeito é bastante frequente por aqui. Isso porque, conscientemente ou não, considerável parcela de nossa egrégia população confunde prestígio com poder de compra.
Não tenho formação em Direito, mas acredito que a escola em que estudei, os cursos que frequentei e os tratados de leis a que tive acesso permitam-me discorrer sobre o seu premiado documentário, O Processo – quase uma resposta a Mecanismo, em que um punhado de artistas ou deu crédito à mídia tradicional e/ou foram cooptados por aquela produtora e distribuidora de séries e filmes sediada na “Terra da Liberdade”.
Estava ansioso por assistir ao documentário, que disseca o quebra-cabeça da politicagem neoliberal e entreguista que serviu como pano de fundo para deputadores e senadores retirarem Dilma Vana Roussef da Presidência. Não descerei à minúcia: basta vem quem eram a porta-voz da acusação e o advogado de defesa, para ver que a partida empregava dados viciados, tabuleiro sujo e jogadores tão ou mais aleijados ética, moral e politicamente que a ex-Presidenta.
A palavra que nomeia o filme é uma das que mais aparece na fala dos protagonistas. Não será vocabulário aleatório. “Processo” é palavra histórica: seu sentido acumula diversos significados: reunião de autos; peças jurídicas que o compõem etc, etc. Mas, neste caso, “processo” remete em especial ao curso dos acontecimentos: relembra que não se tratou de um evento isolado, malgrado a tramitação do impedimento da Presidenta em tempo recorde, mas de parte de um conjunto de manobras que envolveram chantagens de partidos – antes alinhados com a base governista – que “criminalizaram” práticas usualmente implementadas por outros homens distintos, como aquele sociólogo “aposentado” pela universidade, com cinco anos de trabalho; que arranhava quatro idiomas; que não seria mais reconhecido sequer por seu orientador, Florestan Fernandes.
Sem dúvida, uma das maiores contradições de forma, fundo e fala deste território é que o Brasil se autodenomine “país”, embora não passe de entreposto comercial, político e militar dos Estados Unidos. Da cultura nem falo. Há tempos deixamos de escutar o melhor do jazz e do soul, pois divinizar Beyoncé e to speak English é mais importante que cultivar a nossa realidade, por mais tacanha – pedra rachada, falta d’água, comida, direitos e seguridade – que seja.
Se dispuséssemos de maior fatia de tempo, contar-te-ia a reação do público ao filme: aplausos e manifestações de repúdio ao desgoverno ilegítimo e em defesa da liberdade de outro ex-presidente. Aquele que levou um dos ministros a afirmar que o Brasil rumava em direção ao futuro e, portanto, a fala de presidentes do exterior não seria compatível com o país que “queremos”.
Salvo engano, tornamo-nos nação da desfaçatez. Eles sabem que mentem, por isso fingem convicção. Por vezes, recorrem a apresentações em Powepoint; às vezes, são capazes de forjar notas, recibos e “dar fé”. A recompensa é receberem prêmios fake, cuja conta foi dividida pelas mesmas empresas que insuflaram a polarização dos homens nascidos na neocolônia.
Para além dos bastidores prenhes de tipos ridículos e, portanto, risíveis, cumpre ressaltar o papel e a postura das mulheres que enfrentaram com dignidade e firmeza a gargalhada das aves de rapina no congresso. Alguém poderia adverti-los: empoleirar-se no poder, à custa do que restava da soberania nacional, é gesto torpe.
Outra virtude do documentário reside em explicitar as autoavaliações que o partido fez, ao longo do “processo”. Como se desconfia, admitir os erros é condição para alterar a trajetória e repensar os rumos da história. Deixemos aos seres de bico longo e a seus alinhados o fingimento da retidão, do patriotismo e da competência: falta-lhes capacidade de mentir para além da causa própria.
Que O Processo nos ajude a mudar e reescrever a história do que restar.


Meus efusivos cumprimentos.


J. P. C.
https://jornalggn.com.br/blog/jean-pierre-chauvin/carta-para-maria-augusta-ramos-por-jean-pierre-chauvin

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