Tuesday, June 06, 2017

PT falhou ao não enfrentar problemas estruturais, afirma economista

Em Crônica de uma crise anunciada: crítica à política econômica de Lula e Dilma, o professor Plínio de Arruda Sampaio Jr., livre-docente do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, faz uma reflexão sobre os 13 anos de economia política nos governos petistas, apresentando contradições que julga responsáveis pela grave crise que paralisa a economia e polariza a luta de classes atualmente.
“O livro é uma crônica com textos que escrevi ao longo desses treze anos, em função de demandas acadêmicas e da luta social”, afirma Sampaio Jr. “Fui pondo a mão na massa para entender o governo do PT e as contradições em sua política econômica, que surgiam de maneira incipiente e às vezes ambígua, para, ao final de tudo, mostrar que os problemas enfrentados por Lula e Dilma estavam inscritos desde o início, nas opções e escolhas que fizeram.”
No livro lançado em 30 de maio, durante o 23º Encontro Nacional de Economia Política, sediado pela Unicamp, o professor do IE atribui “os problemas que abalam a vida nacional à inserção subalterna do Brasil na ordem global, processo deflagrado por Collor de Mello no início dos anos 1990, consolidado por Fernando Henrique Cardoso com o lançamento do Plano Real e aprofundado e legitimado pelas administrações petistas de Lula e Dilma Rousseff a partir de 2003”, conforme destacado na apresentação.
Foto: Antonio Scarpinetti. Fonte: Jornal da Unicamp.
O economista concedeu entrevista à Luiz Sugimoto e publicada por Jornal da Unicamp, 02-06-2017.
Eis a entrevista.
Por que o Partido dos Trabalhadores frustrou a expectativa dos que imaginavam que a esperança venceria o medo?
Fui do PT desde a fundação [hoje é filiado ao Psol] e isso era objeto de muita controvérsia. Tem gente que acha que o PT não cumpriu o programa, tem gente que vê um problema moral – que, acho, até existe, mas não vou entrar no mérito, porque não é o dominante. O problema principal é que o PT não construiu correlações de forças para enfrentar os problemas estruturais responsáveis pelas mazelas do povo – o subdesenvolvimento e a dependência. Havia promessa de colocar o dedo nas feridas e descongelar as reformas que tinham sido congeladas pela ditadura militar: a reforma urbana, a reforma agrária, a urgência de organizar uma política social de caráter universal.
Ocorre que todas essas questões exigiriam um enfrentamento dos privilégios seculares da sociedade brasileira. E o PT não construiu forças para esse enfrentamento, para mudar o Estado. Poderia mesmo assim tentar cumprir o programa e ver o que aconteceria, mas sua opção foi outra. Como o PT não mudou o Estado, o Estado mudou o PT. E assim o PT foi gradativamente se adaptando, se moldando às exigências do Estado e da burguesia brasileira, para se transformar no que chamo de “partido da ordem”, ou seja, que não questiona os pilares da ordem, mas que procura, dentro desta ordem, fazer o menos pior.
O que mudou na política econômica de Lula em relação à de Fernando Henrique Cardoso e na de Dilma em relação à de Lula?
Política econômica é sempre uma resposta aos problemas concretos de cada momento. Essa resposta vai ser dada pela correlação de forças e pela orientação estratégica de política que se tem. Do ponto de vista estrutural, há um denominador comum nos três governos: o Plano Real, que todos assumiram e todos comemoraram. E o que é o Plano Real? É o plano que organiza a inserção subalterna do Brasil na ordem global. O que esses governos têm de diferente são os problemas que enfrentaram e o raio de manobra de cada um, em cada momento histórico.
Tivemos dois Fernandos Henriques, um do primeiro mandato – o que consolida o Plano Real – e um segundo, o do ajuste – que vive às turras com a crise cambial. Lula pegou o governo brasileiro no momento de uma inflexão da conjuntura internacional, um breve ciclo de expansão da economia mundial, impulsionada por uma especulação desenfreada. Era perfeitamente previsível – tanto que eu e vários colegas vimos isso – que a bolha especulativa um dia estouraria. O crescimento do comércio internacional permitiu que a economia brasileira retomasse o crescimento e deu a Lula margem de manobra para fazer política social. Já Dilma pegou o estouro da bolha e teve de se haver com as exigências do ajuste imposto pelo capital como saída para a crise. A partir de 2013, Dilma já entra na engrenagem do ajuste, no início disfarçada e lentamente, mas, depois da campanha, de maneira explícita. E aí teve o seu fim.
Qual a relação entre a crise que paralisa o Brasil e as contradições inscritas no ciclo de crescimento que impulsionou o chamado “neodesenvolvimentismo”?
PT não enfrentou os problemas estruturais do Brasil, típicos de economias subdesenvolvidas e dependentes, que em última instância são economias sem autonomia para enfrentar os seus problemas; são economias reflexas, que oscilam conforme os ventos internacionais. O PT fez uma opção pelo capital internacional. Ela agrava a vulnerabilidade cambial. Fez uma opção pelo pagamento da dívida pública em detrimento das políticas sociais. Fez uma opção por não enfrentar a distribuição de renda a fundo e, quando o ciclo expansivo se esgota, o mercado interno não tem fôlego próprio para continuar crescendo. A política de enfrentar a crise incentivando o endividamento das famílias, sobretudo das de baixa renda, acabou agravando a recessão.
Enfim, o básico é que o crescimento foi puxado pelos negócios do capital internacional e por uma política que incentivava o mimetismo dos padrões de consumo, de estilos de vida das economias centrais – é isso o que está por trás da crise atual. Assim como o pobre não pode ter o nível de vida do rico, a sociedade pobre não pode pretender generalizar o padrão de consumo do rico para o conjunto da população. Quando Lula estimula isso, ele está fomentando, do ponto de vista estrutural, uma concentração de renda, ainda que no curto prazo ele possa fazer uma distribuição pessoal de renda, como aconteceu.
Como as crises econômica e política se condicionam reciprocamente?
Esta é uma relação complexa. Mas, em última instância, qual é a crise política? É o fim da paz social, que em minha opinião foi decretada em junho de 2013. Do ponto de vista estrutural, a crise política foi provocada pelo fim do crescimento. A paz social era alimentada na acomodação das contradições propiciada pelo crescimento. Quando o crescimento arrefece, os problemas antigos do Brasil, e os novos, surgem com muita força. Isso desmancha a paz social e instala a crise política. Por outro lado, como a burguesia está resolvendo a crise econômica? Com o ajuste: o trabalhador paga o pato. Mas para ter o ajuste é preciso ter um padrão de dominação que controle as pessoas. Então, o fim da paz social passa a combinar com a exigência da burguesia por medidas fortes, autoritárias, para segurar os de baixo. Enquanto a burguesia não reciclar seu padrão de dominação, a incerteza política realimenta a incerteza econômica, pois os empresários olham e não sabem para onde o país vai. Assim, a crise econômica e a crise política se realimentam, criando um círculo vicioso.
O que explica a deposição de Dilma Rousseff?
Basicamente, a deposição de Dilma se deve ao estelionato eleitoral que ela praticou nas eleições de 2014. Quando Dilma diz “não vou fazer ajuste nem que a vaca tussa” e, antes de a vaca tossir, nomeia Joaquim Levy [ministro da Fazenda] para iniciar uma política muito dura de ajuste (que inclusive aprofundou a recessão que já estava inscrita no movimento da economia), ela deu um tiro no pé. A única chance que Dilma teria de ficar no governo era com o apoio popular. Quando traiu de maneira explícita o seu eleitorado, ela ficou a zero e, a zero, qual foi a sua política? Foi a de entregar-se ao capital. Acontece que o capital pede cada vez mais. Depois de negar todas suas promessas eleitorais, Dilma começou a terceirizar seu próprio governo. Não podemos esquecer que Temer chegou a exercer a função de principal articulador político de Dilma. Ela terceirizou a tal ponto o governo que se tornou supérflua. Saiu com um peteleco. Dilma é vítima do golpe dado por ela mesma na classe trabalhadora, o que esvaziou o seu governo, criando um vácuo de poder que esses delinquentes liderados por Eduardo Cunha e Temer ocuparam.
Por que o ajuste liberal não resolve a crise?
O ajuste liberal não resolve nenhum problema fiscal. E isso é claríssimo no caso brasileiro, em que o corte de gasto tem um efeito multiplicador na economia de contrair a receita muito acima do corte de gasto original. Por outro lado, faz parte do ajuste aumentar os juros para saciar a demanda de rentabilidade dos capitais que se abrigam na dívida pública, o que aumenta as despesas com o serviço da dívida. A austeridade fiscal é uma política que não deu certo em nenhum lugar do mundo. Na verdade, o objetivo não é pôr ordem nas finanças, mas alimentar a especulação financeira num momento de incerteza, em que os capitalistas exigem a dívida pública como um mecanismo fictício de valorização do capital.
O sr. participará de uma mesa [dia 1] do Encontro Nacional de Economia Política, aqui na Unicamp, sobre “Movimentos sociais e enfrentamento das políticas de ajuste”. Pode adiantar o que vai expor, em linhas gerais?
Creio que o fundamental é combinar a resistência contra o ataque aos direitos e à democracia, as lutas concretas, com mudanças estruturais que abram novos horizontes para os trabalhadores brasileiros – este é o grande desafio dos movimentos sociais. Os indígenas resistirão aos ataques dos latifundiários, os sem teto resistirão aos ataques da especulação financeira, os sindicatos aos ataques contra seus direitos. O desafio é politizar a resistência no sentido de articular cada luta específica a uma luta geral, porque o ataque que a burguesia está fazendo não é específico, é geral; ela não está agredindo apenas com os guaranis kaiowas. Todos os que vivem do próprio trabalho estão sob fogo cerrado. O que se exige, portanto, é uma resposta coletiva.
Os trabalhadores precisam abrir alguma saída para o povo brasileiro, colocando na ordem do dia a urgência de mudanças estruturais, porque esta armação de política econômica não nos oferece alternativas; as alternativas atendem apenas ao capital e, em tempos de crise, exigem políticas particularmente draconianas para o trabalhador. Se não houver a perspectiva de uma mudança de paradigma, não há possibilidade de enfrentar os problemas que afligem a população. Se a esquerda não tiver capacidade de acender uma luz no fim do túnel, a ultradireita surfará no desespero da classe trabalhadora. É o que está acontecendo na Europa e nos Estados Unidos.
Acredita que vivemos uma crise sem precedentes na história do país?
Esta é uma crise profunda. Sua pergunta é aquela que os brasileiros precisavam estar discutindo, independente de concordarem com minha resposta. Olhando em perspectiva histórica, o que é o Brasil? É uma longa transição da colônia de ontem para o Brasil de amanhã; não é uma colônia, nem propriamente uma nação. Essa longa transição encontra-se interrompida. A sociedade brasileira enfrenta um processo de reversão neocolonial. Estão acabando com todos os elementos mínimos constitutivos de uma sociedade razoavelmente civilizada – nunca fomos muito civilizados, mas o mínimo está sendo tirado. Por quê? O capitalismo vive um momento muito delicado e, dentro da crise estrutural do modo de produção, qual é a saída que está sendo dada? É a saída americana, que corresponde aos interesses dos grandes capitais.
Um dos elementos da saída é o que chamo de “passar o mico” da crise para o vizinho. Isso implica uma reorganização da divisão internacional do trabalho. A mudança em curso reserva ao Brasil uma posição ainda mais degradada na economia mundial. O ajuste neoliberal destruiu o sistema econômico nacional. A indústria brasileira não tem capacidade nem para competir com a indústria da primeira divisão (Estados Unidos), nem com a da segunda divisão (China); não temos nem competitividade dinâmica, nem competitividade espúria para defender a indústria. E o que vai bem no país? O agronegócio, que é um latifúndio; a mineração, que é um latifúndio. Estamos regredindo para uma economia de tipo colonial. Este é o ajuste que está sendo posto em prática, um ajuste que compromete o futuro da sociedade brasileira como projeto civilizador. Em síntese, provavelmente esta seja a maior crise da história da sociedade brasileira. Se nada for feito, do projeto nacional, não restará pedra sobre pedra.

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