Sunday, December 30, 2007

Mobilização social fortalece democracia na América Latina

Saiu na folha de São Paulo
São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2007



ENTREVISTA / JOSÉ MAURÍCIO DOMINGUES

Mobilização social fortalece democracia na América Latina
Para pesquisador, região ingressa na "terceira fase da modernidade" com instituições mais fortes, mas economia ainda atrasada

DOIS MOVIMENTOS caracterizam os últimos 25 anos da América Latina: de um lado, o processo de institucionalização das democracias avançou e há hoje uma forte pressão para a inclusão social, política e econômica de setores secularmente alijados; de outro, o subcontinente tem cada vez menos peso na economia mundial, permanecendo no papel secundário de exportador de commodities. Esta é, em síntese, a análise do sociólogo José Maurício Domingues.

MARCELO BERABA
DA SUCURSAL DO RIO

Professor e diretor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), Domingues é autor do recém-lançado "Aproximações à América Latina - Desafios contemporâneos" (Civilização Brasileira).
Na sua opinião, a reversão do quadro de sócio periférico da economia globalizada terá de contemplar um forte investimento integrado dos principais países da região, encabeçados pelo Brasil, em ciência e tecnologia. Leia abaixo os principais trechos da entrevista que ele deu à Folha, na sede do Iuperj, no bairro carioca de Botafogo.


FOLHA - A democracia está consolidada na América Latina?
JOSÉ MAURÍCIO DOMINGUES - Ela não está consolidada inteiramente em lugar nenhum do mundo, haja vista a situação americana, com Bush vetando a proibição de tortura. Democracia é sempre frágil e tem de ser conquistada todos os dias por uma cidadania minimamente mobilizada. Mas acho que nos últimos 25 anos ela fez avanços muito significativos na América Latina.
Os sujeitos sociais, coletiva e individualmente, são hoje mais livres, mobilizados e comprometidos com a democracia do que jamais foram no passado.
A tendência é uma mobilização cidadã ao lado do processo de institucionalização da democracia.
FOLHA - No livro o senhor se refere a uma terceira fase da modernidade na América Latina. Como a caracteriza?
DOMINGUES - Esse é um processo global. A primeira fase da modernidade é liberal restrita, começa no final do século 18 e se estende pelo século 19. Na segunda fase, no período dos anos 1930 ao final dos anos 1990, o Estado vai ter uma maior presença. A terceira fase se caracteriza por uma revolução científica e tecnológica muito forte, por uma pluralização das identidades sociais e por uma modificação nas formas do Estado.
Isso implica uma maior complexidade social e a tendência a uma utilização cada vez mais ampla dos mecanismos de rede.
A América Latina se moderniza muito, nessa terceira fase, sob o ponto de vista social e político, mas economicamente não. O modelo neoliberal foi uma resposta à crise dos anos 1970. Na América Latina isso resultou no sepultamento definitivo do nacional-desenvolvimentismo e na abertura generalizada dos mercados.
Nós somos hoje grandes exportadores de commodities como soja, carne, aço, minério de ferro, e é em cima disso que estamos montados nesta retomada do desenvolvimento econômico, entre aspas, na onda do crescimento da economia mundial.
FOLHA - O que há de comum nos processos em curso na Venezuela e na Bolívia?
DOMINGUES - São processos políticos absolutamente distintos. O processo boliviano é basicamente popular e democrático. Em nenhum momento o governo ou o MAS (Movimento ao Socialismo) propõem construir o socialismo na Bolívia. Alguns inclusive falam em capitalismo andino. É um processo de democratização, de integração das populações indígenas a um Estado que sempre foi controlado pelas oligarquias. É um movimento que vem do final dos anos 1980, que pela primeira vez vê surgir o indígena como ator político autônomo e que vai desaguar na ascensão do Evo Morales ao poder com a idéia de refundar o Estado boliviano de uma forma democrática e integradora, utilizando os recursos naturais para conseguir algum desenvolvimento.
Já o caso venezuelano não tem nada a ver com isso. A Venezuela era um sistema político liberal cuja força residia nas clientelas que a oligarquia podia construir através do petróleo abundante. Só que é um sistema que apodreceu por dentro, sobretudo pelo acordo entre os principais partidos pelo qual, não importava quem ganhasse as eleições, todos continuavam no poder e com a população marginalizada.
Isso gerou insatisfação social, que não levou a uma organização popular, mas a uma rebelião crescente dentro das Forças Armadas.
Neste sentido, Hugo Chávez emerge numa situação política quase de terra arrasada. Ele surge como uma liderança cesarista que catalisa determinadas demandas da sociedade em função da sua figura pessoal e de suas bases nas Forças Armadas. Isso abriu a possibilidade de mobilizações populares, mas gerou resistência em setores da oligarquia que estavam acostumados a mandar sem contestação.
FOLHA - É uma democracia frágil?
DOMINGUES - O problema é que também Chávez tem tendências antidemocráticas. Espero que a derrota no referendo arrefeça seus ânimos de concentração de poder e que a oposição também aprenda que pode ganhar eleitoralmente, porque é uma oposição extremamente golpista. Agora se chegou a um certo empate político, o que talvez abra a possibilidade de consolidação institucional da democracia na Venezuela.
FOLHA - O processo na Bolívia pode chegar à separação?
DOMINGUES - Tem setores em Santa Cruz e outras províncias ricas que gostariam de se separar do país. Mas acho que não vai chegar a isso. Primeiro, Morales terá de recuar de alguma maneira e renegociar o pacto. O Exército já disse que não aceita a separação. Os presidentes da América Latina deixaram claro que tampouco a aceitam.
Você não cria um país sem reconhecimento internacional, sem que as Forças Armadas sejam coniventes e sem que negocie muito largamente dentro do próprio país, a não ser que parta para a guerra civil. Acho que isso não vai ocorrer, embora haja tensões nesta direção. Eles vão ter de renegociar o pacto.
Não vai ser exatamente o que Morales e o MAS querem, mas também não será o que querem Santa Cruz e aliados.
FOLHA - É nítido o esforço do Brasil de construir um processo de integração na América Latina. O que impede a aceleração desta integração?
DOMINGUES - Um dos problemas básicos tem a ver com a nossa posição subordinada à divisão internacional do trabalho. Outro dificuldade é a pouca integração física. Nosso desenvolvimento científico e tecnológico é muito baixo, o Brasil de longe excede os outros países latino-americanos. E há complicações do ponto de vista econômico, embora o Brasil tenha muito mais a ganhar do que a perder, porque é hoje uma plataforma de exportação de grandes corporações para o restante da América do Sul.
Fala-se muito na integração física, importante, na integração dos mercados, decisiva, mas o desenvolvimento científico-tecnológico é um eixo fundamental para se levar à frente essa integração, capacitando os nossos vizinhos até para que a gente possa ter mais complementaridade com eles.
FOLHA - Ao tomar posse, a nova presidente da Argentina, Cristina Kirchner, atacou os Estados Unidos. Vários países têm relações tensas com Washington. Como analisa essa relação?
DOMINGUES - A Argentina sempre teve uma relação difícil com os Estados Unidos. O período do Menem [Carlos Menem, presidente entre 1989 a 1999] é uma exceção. Vários países da América Latina em vários momentos tiveram períodos tensos com os Estados Unidos. Antigamente, eles viam a região como uma extensão natural do seu poder.
O período do Bush [George W., presidente dos EUA) é um período de muito pouca preocupação com a América Latina.
Eles deram umas pancadas no Chávez, reclamaram um pouco do Kirchner, afagaram um pouco o Lula porque parecia mais moderado, mas deram muito pouca importância ao subcontinente. Perderam a discussão da Alca e tentaram comer pelas beiradas com os tratados de livre comércio.
Acho que isso vai mudar muito se for confirmada a ascensão dos democratas no próximo ano. Se isso acontecer, nós vamos ter certamente uma mudança de posição e um interesse muito maior pela América Latina, como os democratas sempre demonstraram.
FOLHA - Isso é bom ou ruim?
DOMINGUES - Isso significa uma situação muito mais complexa, porque eles vão querer nos trazer de volta para a sua órbita de influência com muito mais flexibilidade, oferecendo alguma coisa, mas por outro lado nos amarrando mais. Os Estados Unidos perderam de fato influência na América Latina nos últimos seis, sete anos, mas a tendência é que, se o governo democrata realmente emergir, nós tenhamos relações mais sutis e mais complexas.
FOLHA - E a Argentina?
DOMINGUES - A Argentina é o país mais importante da América do Sul para o Brasil. É o nosso parceiro fundamental e a integração está avançando, apesar de todos os problemas do Mercosul.
A criação agora pela Cristina Kirchner do Ministério da Ciência e Tecnologia vai aumentar a integração científica. A América Latina tem cada vez menos peso na economia mundial. Só vamos conseguir reverter a situação se dermos um salto científico-tecnológico.
FOLHA - O Chávez alardeia o perigo de invasão dos Estados Unidos. Ele corre esse risco?
DOMINGUES - Não, eu não acredito que os Estados Unidos vão invadir a Venezuela ou vão bombardeá-la. Mas a região de fronteira com a Colômbia é uma região complicada. Os EUA têm muitas bases militares, ajudam muito militarmente a Colômbia, é uma zona potencial de conflitos se houver interesse dos EUA em desestabilizar o governo Chávez.
Mas não acredito que o problema seja esse. Nem acredito que o Chávez esteja se armando muito. Os Exércitos da América Latina estão destruídos há 20, 30 anos, com exceção do Chile, que tem o Exército mais bem equipado de toda a América latina. Não creio que haja um ambiente de tensão militar na América Latina nem de corrida armamentista.
O Chávez utiliza muito essa retórica [da invasão americana] para tentar mobilizar um sentimento nacional em torno da figura dele e em torno das Forças Armadas, que são o pilar de seu poder na Venezuela.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft3012200714.htm

Comentário: Uma entrevista para ser analisada e pontuada dentro do espaço público e democrático - devemos concordar que o investimento em ciência e tecnologia é ponto chave para alavancar o desenvolvimento político, social e econômico na America Latina – Será que o Brasil vai despertar para essa perspectiva?

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